Período socrático ou antropológico
Com o desenvolvimento das cidades, do comércio, do
artesanato e das artes militares, Atenas tornou-se o centro da vida social,
política e cultural da Grécia, vivendo seu período de esplendor, conhecido como
o Século de Péricles.
É a época de maior florescimento da democracia. A
democracia grega possuía, entre outras, duas características de grande
importância para o futuro da Filosofia.
Em primeiro lugar, a democracia afirmava a igualdade de
todos os homens adultos perante as leis e o direito de todos de participar
diretamente do governo da cidade, da polis.
Em segundo lugar, e como conseqüência, a democracia, sendo
direta e não por eleição de representantes, garantia a todos a participação no
governo, e os que dele participavam tinham o direito de exprimir, discutir e
defender em público suas opiniões sobre as decisões que a cidade deveria tomar.
Surgia, assim, a figura política do cidadão. (Nota: Devemos observar que
estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes:
mulheres, escravos, crianças e velhos. Também estavam excluídos os
estrangeiros.)
Ora, para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas
assembléias, o cidadão precisava saber falar e ser capaz de persuadir. Com
isso, uma mudança profunda vai ocorrer na educação grega.
Quando não havia democracia, mas dominavam as famílias
aristocráticas, senhoras das terras, o poder lhes pertencia. Essas famílias,
valendo-se dos dois grandes poetas gregos, Homero e Hesíodo, criaram um padrão
de educação, próprio dos aristocratas. Esse padrão afirmava que o homem ideal
ou perfeito era o guerreiro belo e bom. Belo: seu corpo era formado pela
ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra, imitando os heróis da guerra de
Tróia (Aquiles, Heitor, Ájax, Ulisses). Bom: seu espírito era formado escutando
Homero e Hesíodo, aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas
pelos heróis, a principal delas sendo a coragem diante da morte, na guerra. A
virtude era a Arete (excelência e superioridade), própria dos melhores,
os aristoi.
Quando, porém, a democracia se instala e o poder vai sendo
retirado dos aristocratas, esse ideal educativo ou pedagógico também vai sendo
substituído por outro. O ideal da educação do Século de Péricles é a formação
do cidadão. A Arete é a virtude cívica.
Ora, qual é o momento em que o cidadão mais aparece e mais
exerce sua cidadania? Quando opina, discute, delibera e vota nas assembléias.
Assim, a nova educação estabelece como padrão ideal a formação do bom orador,
isto é, aquele que saiba falar em público e persuadir os outros na política.
Para dar aos jovens essa educação, substituindo a educação
antiga dos poetas, surgiram, na Grécia, os sofistas, que são os
primeiros filósofos do período socrático. Os sofistas mais importantes foram:
Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini e Isócrates de Atenas.
Que diziam e faziam os sofistas? Diziam que os ensinamentos
dos filósofos cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não
tinham utilidade para a vida da polis. Apresentavam-se como mestres de
oratória ou de retórica, afirmando ser possível ensinar aos jovens tal arte
para que fossem bons cidadãos.
Que arte era esta? A arte da persuasão. Os sofistas
ensinavam técnicas de persuasão para os jovens, que aprendiam a defender a
posição ou opinião A, depois a posição ou opinião contrária, não-A, de modo
que, numa assembléia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma
opinião e ganhassem a discussão.
O filósofo Sócrates, considerado o patrono da Filosofia,
rebelou-se contra os sofistas, dizendo que não eram filósofos, pois não tinham
amor pela sabedoria nem respeito pela verdade, defendendo qualquer idéia, se
isso fosse vantajoso. Corrompiam o espírito dos jovens, pois faziam o erro e a
mentira valer tanto quanto a verdade.
Como homem de seu tempo, Sócrates concordava com os
sofistas em um ponto: por um lado, a educação antiga do guerreiro belo e bom já
não atendia às exigências da sociedade grega, e, por outro lado, os filósofos
cosmologistas defendiam idéias tão contrárias entre si que também não eram uma
fonte segura para o conhecimento verdadeiro. (Nota: Historicamente, há
dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque não
possuímos seus textos. Restaram fragmentos apenas. Por isso, nós os conhecemos
pelo que deles disseram seus adversários - Platão, Xenofonte, Aristóteles - e
não temos como saber se estes foram justos com aqueles. Os historiadores mais
recentes consideram os sofistas verdadeiros representantes do espírito democrático,
isto é, da pluralidade conflituosa de opiniões e interesses, enquanto seus
adversários seriam partidários de uma política aristocrática, na qual somente
algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da
sociedade.)
Discordando dos antigos poetas, dos antigos filósofos e dos
sofistas, o que propunha Sócrates?
Propunha que, antes de querer conhecer a Natureza e antes
de querer persuadir os outros, cada um deveria, primeiro e antes de tudo,
conhecer-se a si mesmo. A expressão “conhece-te a ti mesmo” que estava gravada
no pórtico do templo de Apolo, patrono grego da sabedoria, tornou-se a divisa
de Sócrates.
Por fazer do autoconhecimento ou do conhecimento que os
homens têm de si mesmos a condição de todos os outros conhecimentos
verdadeiros, é que se diz que o período socrático é antropológico, isto é,
voltado para o conhecimento do homem, particularmente de seu espírito e de sua
capacidade para conhecer a verdade.
O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates
foi traçado por seu mais importante aluno e discípulo, o filósofo ateniense
Platão.
Que retrato Platão nos deixa de seu mestre, Sócrates?
O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas,
pelo mercado e pela assembléia indagando a cada um: “Você sabe o que é isso que
você está dizendo?”, “Você sabe o que é isso em que você acredita?”, “Você acha
que está conhecendo realmente aquilo em que acredita, aquilo em que está
pensando, aquilo que está dizendo?”, “Você diz”, falava Sócrates, “que a
coragem é importante, mas: o que é a coragem? Você acredita que a
justiça é importante, mas: o que é a justiça? Você diz que ama as coisas
e as pessoas belas, mas o que é a beleza? Você crê que seus amigos são a
melhor coisa que você tem, mas: o que é a amizade?”
Sócrates fazia perguntas sobre as idéias, sobre os valores
nos quais os gregos acreditavam e que julgavam conhecer. Suas perguntas
deixavam os interlocutores embaraçados, irritados, curiosos, pois, quando
tentavam responder ao célebre “o que é?”, descobriam, surpresos, que não sabiam
responder e que nunca tinham pensado em suas crenças, seus valores e suas
idéias.
Mas o pior não era isso. O pior é que as pessoas esperavam
que Sócrates respondesse por elas ou para elas, que soubesse as respostas às
perguntas, como os sofistas pareciam saber, mas Sócrates, para desconcerto
geral, dizia: “Eu também não sei, por isso estou perguntando”. Donde a famosa
expressão atribuída a ele: “Sei que nada sei”.
A consciência da própria ignorância é o começo da
Filosofia. O que procurava Sócrates? Procurava a definição daquilo que uma
coisa, uma idéia, um valor é verdadeiramente. Procurava a essência
verdadeira da coisa, da idéia, do valor. Procurava o conceito e não a
mera opinião que temos de nós mesmos, das coisas, das idéias e dos valores.
Qual a diferença entre uma opinião e um conceito? A opinião
varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É
instável, mutável, depende de cada um, de seus gostos e preferências. O
conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e necessária que o
pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e
necessária de alguma coisa.
Por isso, Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era
bela - pois nossa opinião sobre ela pode variar - e sim: O que é a beleza? Qual
é a essência ou o conceito do belo? Do justo? Do amor? Da amizade?
Sócrates perguntava: Que razões rigorosas você possui para
dizer o que diz e para pensar o que pensa? Qual é o fundamento racional daquilo
que você fala e pensa?
Ora, as perguntas de Sócrates se referiam a idéias,
valores, práticas e comportamentos que os atenienses julgavam certos e
verdadeiros em si mesmos e por si mesmos. Ao fazer suas perguntas e suscitar
dúvidas, Sócrates os fazia pensar não só sobre si mesmos, mas também sobre a polis.
Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto.
Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o
poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas
são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que elas são. Para os
poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude
pensar. Por isso, eles o acusaram de desrespeitar os deuses, corromper os
jovens e violar as leis. Levado perante a assembléia, Sócrates não se defendeu
e foi condenado a tomar um veneno - a cicuta - e obrigado a suicidar-se.
Por que Sócrates não se defendeu? “Porque”, dizia ele, “se
eu me defender, estarei aceitando as acusações, e eu não as aceito. Se eu me
defender, o que os juízes vão exigir de mim? Que eu pare de filosofar. Mas eu
prefiro a morte a ter que renunciar à Filosofia”.
O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão
numa obra intitulada Apologia de Sócrates, isto é, a defesa de Sócrates,
feita por seus discípulos, contra Atenas.
Sócrates nunca escreveu. O que sabemos de seus pensamentos
encontra-se nas obras de seus vários discípulos, e Platão foi o mais importante
deles. Se reunirmos o que esse filósofo escreveu sobre os sofistas e sobre
Sócrates, além da exposição de suas próprias idéias, poderemos apresentar como
características gerais do período socrático:
● A Filosofia se volta para as questões humanas no plano da
ação, dos comportamentos, das idéias, das crenças, dos valores e, portanto, se
preocupa com as questões morais e políticas.
● O ponto de partida da Filosofia é a confiança no
pensamento ou no homem como um ser racional, capaz de conhecer-se a si mesmo e,
portanto, capaz de reflexão. Reflexão é a volta que o pensamento faz sobre si
mesmo para conhecer-se; é a consciência conhecendo-se a si mesma como
capacidade para conhecer as coisas, alcançando o conceito ou a essência delas.
● Como se trata de conhecer a capacidade de conhecimento do
homem, a preocupação se volta para estabelecer procedimentos que nos garantam
que encontramos a verdade, isto é, o pensamento deve oferecer a si mesmo
caminhos próprios, critérios próprios e meios próprios para saber o que é o
verdadeiro e como alcançá-lo em tudo o que investiguemos.
● A Filosofia está voltada para a definição das virtudes
morais e das virtudes políticas, tendo como objeto central de suas
investigações a moral e a política, isto é, as idéias e práticas que norteiam
os comportamentos dos seres humanos tanto como indivíduos quanto como cidadãos.
● Cabe à Filosofia, portanto, encontrar a definição, o
conceito ou a essência dessas virtudes, para além da variedade das opiniões,
para além da multiplicidade das opiniões contrárias e diferentes. As perguntas
filosóficas se referem, assim, a valores como a justiça, a coragem, a amizade,
a piedade, o amor, a beleza, a temperança, a prudência, etc., que constituem os
ideais do sábio e do verdadeiro cidadão.
● É feita, pela primeira vez, uma separação radical entre,
de um lado a opinião e as imagens das coisas, trazidas pelos nossos
órgãos dos sentidos, nossos hábitos, pelas tradições, pelos interesses, e, de
outro lado, as idéias. As idéias se referem à essência íntima,
invisível, verdadeira das coisas e só podem ser alcançadas pelo pensamento
puro, que afasta os dados sensoriais, os hábitos recebidos, os preconceitos, as
opiniões.
● A reflexão e o trabalho do pensamento são tomados como
uma purificação intelectual, que permite ao espírito humano conhecer a verdade
invisível, imutável, universal e necessária.
● A opinião, as percepções e imagens sensoriais são
consideradas falsas, mentirosas, mutáveis, inconsistentes, contraditórias,
devendo ser abandonadas para que o pensamento siga seu caminho próprio no
conhecimento verdadeiro.
● A diferença entre os sofistas, de um lado, e Sócrates e
Platão, de outro, é dada pelo fato de que os sofistas aceitam a validade das
opiniões e das percepções sensoriais e trabalham com elas para produzir
argumentos de persuasão, enquanto Sócrates e Platão consideram as opiniões e as
percepções sensoriais, ou imagens das coisas, como fonte de erro, mentira e
falsidade, formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade
plena da realidade.
Fonte:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
7 de março de 2015 às 23:57
Texto muito bom para estudo e completo. Parabéns!!
19 de agosto de 2015 às 20:41
Texto muito esclarecedor! Muito obrigada.