A ideia de revolução
A política liberal foi o
resultado de acontecimentos econômicos e sociais que impuseram mudanças na
concepção do poder do Estado, considerado instituído pelo consentimento dos
indivíduos através do contrato social. Tais acontecimentos ficaram conhecidos
com o nome de revoluções burguesas,
isto é, mudanças na estrutura econômica, na sociedade e na política, efetuadas
por uma nova classe social, a burguesia.
O uso da palavra revolução para designar tais mudanças é
curioso. De fato, essa palavra provém do vocabulário da astronomia,
significando o movimento circular completo que um astro realiza ao voltar ao
seu ponto de partida. Uma revolução se efetua quando o movimento total de um
astro faz coincidirem seu ponto de partida e seu ponto de chegada. Revolução designa movimento circular
cíclico, isto é, repetição contínua de um mesmo percurso.
Como entender que essa palavra
tenha entrado para o vocabulário político significando mudanças e alterações
profundas nas relações sociais e no poder? Como entender que, em vez de
significar retorno circular e cíclico ao ponto de partida, signifique
exatamente o contrário, isto é, percurso rumo ao tempo novo e à sociedade nova?
Para responder a essas perguntas
precisamos examinar um pouco mais de perto as revoluções burguesas, isto é, a
Revolução Inglesa de 1644, a Revolução Norte-Americana de 1776 e a Revolução
Francesa de 1789.
Embora em todas elas o resultado
tenha sido o mesmo, qual seja, a subida e consolidação política da burguesia
como classe dominante, nas três houve o que um historiador denominou de
“revolução na revolução”, indicando com isso a existência de um movimento
popular radical ou a face democrática e igualitária da revolução, derrotada
pela revolução burguesa. Em outras palavras, nas três revoluções, a burguesia
pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza, passou a dominar o Estado
e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças, enquanto as classes
populares, que participaram daquela vitória, desejavam muito mais: desejavam
instituir uma sociedade inteiramente nova, justa, livre e feliz.
Ora, as classes populares não
possuíam teorias políticas de tipo filosófico e científico. Para explicar o
mundo em que viviam e o mundo que desejavam dispunham de uma única fonte: a
Bíblia. Através da religião, possuíam duas referências de justiça e felicidade:
a imagem do Paraíso terrestre (no Antigo Testamento) e o Reino de Deus na Terra
ou Nova Jerusalém (no Novo Testamento) que restauraria o Paraíso depois que
Cristo viesse ao mundo pela segunda vez e, no fim dos tempos ou tempo do fim,
derrotasse para sempre o Mal. As classes populares revolucionárias dispunham,
portanto, de um imaginário messiânico e milenarista (milenarista porque o Reino
de Deus na Terra duraria mil anos de felicidade, abundância e justiça).
Ao lutarem politicamente, as
classes populares olhavam para o passado (o ponto de partida dos homens no
Paraíso) e para o futuro (o ponto de chegada dos homens na Nova Jerusalém).
Olhavam para o tempo futuro e novo – a sociedade dos justos na Terra -, que
seria a restituição ou restauração do tempo passado original – o Paraíso.
Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do movimento político coincidiam
com a existência da justiça e da felicidade, o futuro e o passado se encontravam,
fechando o ciclo e o círculo da existência humana, graças à ação do presente.
Por isso, designaram os acontecimentos de que eram os sujeitos e protagonistas
com a palavra revolução.
Se compararmos os movimentos
revolucionários dos séculos XVII e XVIII com a teoria política liberal,
notaremos uma diferença importante entre eles.
De fato, as teorias liberais
separam o Estado e a sociedade civil. O primeiro aparece como instância
impessoal de dominação (impõe obediência), de estabelecimento e aplicação das
leis, como garantidor da ordem através do uso legal da violência para punir
todo o crime definido pelas leis, e como árbitro dos conflitos sociais. A
sociedade civil, por seu turno, aparece como um conjunto de relações sociais
diversificadas entre classes e grupos sociais, cujos interesses e direitos
podem coincidir ou opor-se. Nela existem as relações econômicas de produção,
distribuição, acumulação de riquezas e consumo de produtos que circulam através
do mercado.
O centro da sociedade civil é a
propriedade privada, que diferencia indivíduos, grupos e classes sociais, e o
centro do Estado é a garantia dessa propriedade, sem contudo mesclar política e
sociedade. O coração do liberalismo é a diferença e a distância entre Estado e
sociedade.
Ora, as revoluções, e sobretudo
a face popular das revoluções, operam exatamente com a indistinção entre Estado
e sociedade, entre ação política e relações sociais. As revoluções pretendem
derrubar o poder existente ou o Estado porque o percebem como responsável ou cúmplice
das desigualdades e injustiças existentes na sociedade. Em outras palavras, a
percepção de injustiças sociais leva às ações políticas. Uma revolução pode
começar como luta social que desemboca na luta política contra o poder ou pode
começar como luta política que desemboca na luta por uma outra sociedade.
Eis por que, em todas as
revoluções burguesas, vemos sempre acontecer o mesmo processo: a burguesia
estimula a participação popular, porque precisa que a sociedade toda lute
contra o poder existente; conseguida a mudança política, com a passagem do
poder da monarquia à república, a burguesia considera a revolução terminada; as
classes populares, porém, a prosseguem, pois aspiram ao poder democrático e
desejam mudanças sociais; a burguesia vitoriosa passa a reprimir as classes
populares revolucionárias, desarma o povo que ela própria armara, prende,
tortura e mata os chefes populares e encerra, pela força, o processo
revolucionário, garantindo, com o liberalismo, a separação entre Estado e
sociedade.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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