O mundo desordenado
A obra de Maquiavel, criticada
em toda a parte, atacada por católicos e protestantes, considerada ateia e
satânica, tornou-se, porém, a referência obrigatória do pensamento político
moderno. A ideia de que a finalidade da política é a tomada e conservação do
poder e que este não provém de Deus, nem da razão, nem de uma ordem natural
feita de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação
do poder. Em alguns casos, como na França e na Prússia, surgirá a teoria do
direito divino dos reis, baseada na reformulação jurídica da teologia política
do “rei pela graça divina” e dos “dois corpos do rei”. Na maioria dos países,
porém, a concepção teocrática não foi mantida e, partindo de Maquiavel, os
teóricos tiveram que elaborar novas teorias políticas.
Para compreendermos os conceitos
que fundarão essas novas teorias precisamos considerar alguns acontecimentos
históricos que mudaram a face econômica e social da Europa, entre os séculos XV
e XVII.
Já mencionamos, ao tratar do
ideal republicano, o novo papel das cidades e da nova classe social – a
burguesia – no plano econômico, social e político. Outros fatores, além do
crescimento das corporações de ofício e do comércio, são também importantes
para o fortalecimento dessa nova classe:
● a decadência e ruína de inúmeras famílias aristocráticas, cujas riquezas
foram consumidas nas guerras das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram
abandonadas porque seus nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram
sem deixar herdeiros. Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de
armamentos e pagamentos de exércitos para as Cruzadas, suas terras sendo
confiscadas pelo rei para cobrir as dívidas. Os servos da gleba, que
trabalhavam nessas propriedades, bem como os camponeses pobres e livres, que as
arrendavam em troca de serviços, migravam para as cidades, tornando-se membros
das corporações de ofícios ou servos urbanos de famílias nobres que haviam
passado a dedicar-se ao comércio;
● a decadência agrária foi acelerada também por uma grande peste que
assolou a Europa no final da Idade Média – a chamada peste negra -, que dizimou
gente, gado e colheitas, arruinando a nobreza fundiária e causando migrações
para as cidades;
● a vida urbana provocou o crescimento de atividades artesanais e, com
elas, o desenvolvimento comercial para compra e venda dos produtos, criando
especialidades regionais e o intercâmbio comercial em toda a Europa;
● as grandes rotas do comércio com o Oriente, dominadas, primeiro, pelas
cidades italianas e, depois, pelos impérios ultramarinos de Portugal, Espanha,
Inglaterra e França, deram origem a um novo tipo de riqueza, o capital, baseado
no lucro advindo da exploração do trabalho dos homens pobres e livres que
haviam migrado para as cidades e na exploração do trabalho escravo de nativos e
negros nas Américas.
Nas cidades, primeiro, e no campo, depois, a miséria e as péssimas
condições de trabalho e de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos. No
campo, tais revoltas foram um dos efeitos da Reforma Protestante, que acusara a
Igreja e a nobreza de cometerem o pecado da ambição, explorando e oprimindo os
pobres. Nas cidades, as revoltas populares eram também um efeito da Reforma
Protestante, que havia declarado a igualdade dos seres humanos, afirmando como
principal virtude o trabalho e principal vício a preguiça.
O desenvolvimento econômico das cidades, o surgimento da burguesia
comerciante ou mercantil, o crescimento da classe dos trabalhadores pobres, mas
livres (isto é, sem laços de servidão com os senhores feudais), a Reforma
Protestante que questionara o poder econômico e político da Igreja, as revoltas
populares, a guerra entre potências pelo domínio dos mares e dos novos
territórios descobertos, a queda de reis e de famílias da nobreza, a ascensão
de famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os nobres,
todos esses fatos evidenciavam que a ideia cristã, herdada do Império Romano e
consolidada pela Igreja Romana, de um mundo constituído naturalmente por
hierarquias era uma ideia que não correspondia à realidade.
A nova situação histórica fazia aparecer dois fatos impossíveis de negar:
1. a existência de indivíduos – um burguês e um trabalhador não podiam
invocar sangue, família, linhagem e dinastia para explicar por que existiam e
por que haviam mudado de posição social, mas só podiam invocar a si mesmos como
indivíduos;
2. a existência de conflitos entre indivíduos e grupos de indivíduos pela
posse de riquezas, cargos, postos e poderes anulava a imagem da comunidade
cristã, una, indivisa e fraterna.
Os teóricos precisavam, portanto, explicar o que eram os indivíduos e por
que lutavam mortalmente uns contra os outros, além de precisarem oferecer
teorias capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais. Em outras
palavras, foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política.
Por que indivíduos isolados formam uma sociedade? Por que indivíduos
independentes aceitam submeter-se ao poder político e às leis?
A resposta a essas duas perguntas conduz às ideias de Estado de Natureza e
Estado Civil.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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