Antes de “O príncipe”
Embora diferentes e, muitas
vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num
mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e
religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais
são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a ideia de que o
poder seria uma graça ou um fator divino; no entanto, embora recusem a
teocracia, não podem recusar uma outra ideia cristã, qual seja, a de que o
poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo
com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia
continuam presentes nas formulações teóricas da política.
Se deixarmos de lado as
diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras
políticas como cristãs, poderemos
perceber certos traços comuns a todas elas:
● encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria
política. Em outras palavras, para uns, o fundamento da política encontra-se em
Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência
divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na
Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente
político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na ideia de que existe
uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz
instituir a vida política. Há, pois, algo – Deus, Natureza ou razão – anterior
e exterior à política, servindo de fundamento a ela;
● afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa,
cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela
boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são
vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem, a
qualquer preço, ser afastados da comunidade e do poder;
● assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto
é, no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da
indivisão da comunidade;
● classificam os regimes políticos em justos-legítimos e
injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre
os primeiros e identificando com os segundos o poder obtido por conquista e
usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional,
contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e
perverso.
Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é
demolidora e revolucionária.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
0 Response to "Antes de “O príncipe”"
Postar um comentário