A revolução maquiavelista
Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para
formular teorias políticas, e, diferentemente dos contemporâneos
renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir
suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo.
Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, via as lutas europeias
de centralização monárquica (França, Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a
ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo viu a
fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja. A
compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o
conduziram à ideia de que uma nova concepção da sociedade e da política
tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença.
Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer
respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam
compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos
acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.
Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos
quais resumimos a tradição política, observaremos por onde passa a ruptura
maquiavelista:
1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus,
Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele em O
príncipe, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo
dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem
comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea
nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a
Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um pólo superior
que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse pólo é o poder político. Assim,
a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si
mesma unidade e identidade. A política resulta da ação social a partir das
divisões sociais;
2. Maquiavel não aceita a ideia da boa comunidade política constituída para
o bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é
a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente
dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea,
voltada para o bem comum. Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel,
é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar,
oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares
fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade.
A finalidade política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e
cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O
verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para
isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o
poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição
de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica
racional da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do
poder e da lei;
3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso,
portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas.
O príncipe precisa ter virtu, mas
esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para
tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a
astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e
respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser
odiado.
Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido – o que
só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa
ser amado, pois isto o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai conhece
apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe aparecerá
na qualidade das instituições que soube criar e manter e na capacidade que
tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte;
4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos
(monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas
(tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime
legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer
regime político – tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver – poderá
ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a
legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade.
Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é
maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é
legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas
sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que
rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a
serviço do povo. O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode
ser todo um povo que conquista, pela força, o poder. Qualquer desses regimes
políticos será legítimo se for uma república
e não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não
está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de
particulares.
Dissemos que a tradição grega tornara ética e política inseparáveis, que a
tradição romana colocara essa identidade da ética e da política na pessoa
virtuosa do governante e que a tradição cristã transformara a pessoa política
num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade
humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da política,
orientada pela ideia de justiça e bem comum. Esse conjunto de ideias e imagens
é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção maquiavelista que melhor
revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe virtuoso.
Quando estudamos a ética, vimos que a questão central posta pelos filósofos
sempre foi: O que está e o que não está em nosso poder? Vimos também que “estar
em nosso poder” significava a ação voluntária racional livre, própria da
virtude, e “não estar em nosso poder” significava o conjunto de circunstâncias
externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação. Vimos,
ainda, que esse conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de nossa
vontade foi chamado pela tradição filosófica de fortuna. A oposição virtude-fortuna
jamais abandonou a ética e, como esta surgia inseparável da política, a mesma
oposição se fez presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é
aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante
fortuna.
Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido inteiramente
novo. A virtu do príncipe não
consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna,
lutando contra ela. A virtu é a
capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias, mudando com elas
para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um príncipe que agir
sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as
circunstâncias fracassará e não terá virtu
alguma.
Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como
elas, ser volúvel e inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e
vencê-las. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em
certas ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos,
deverá ceder à vontade dos outros, em algumas, ser inflexível. O ethos ou caráter do príncipe deve variar
com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas.
A fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la.
Oferece-se como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e
vencê-la. Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter
virtuoso e a inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política
como astúcia e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como
ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.
A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em
sua vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada
pode ser virtu política. Em outras
palavras, Maquiavel inaugura a ideia de valores políticos medidos pela eficácia
prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade
privada dos indivíduos. O ethos
político e o ethos moral são
diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a
lógica real do poder.
Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da
religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só poderia ter sido visto como
“maquiavélico”. As palavras maquiavélico
e maquiavelismo, criadas no século
XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando esta
é simplesmente política, isto é, sem as máscaras da religião, da moral, da
razão e da Natureza.
Para o Ocidente cristão do século XVI, o príncipe maquiavelista, não sendo
o bom governo sob Deus e a razão, só poderia ser diabólico. À sacralização do
poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa
imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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