A teoria liberal
No pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um
direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza
(em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de
terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para
garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e
um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia
em ascensão.
De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio
econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia
monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também
permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava
de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e
a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da
propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente
será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do
século XVIII.
Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à
liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são
conseguidos pelo trabalho.
Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto
direito natural?
Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez
uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu
domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança,
deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe
retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto.
Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do
homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por
isso, de origem divina, ela é um direito natural.
O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe
atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de
propriedade.
Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza
e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o
burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto
reis e nobres são parasitas da sociedade.
O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos
nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os
homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o
direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que
não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição
inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para
outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo
para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente
para conseguir uma propriedade.
Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada,
mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do
soberano?
A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da
independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século
passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é
tríplice:
1. por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia),
garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica,
pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela
interferir. Donde a ideia de liberalismo,
isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários
privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;
2. visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras
e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo
intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não
tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos
conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis
e da força, os conflitos da sociedade civil;
3. o Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto
pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a
consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência,
isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer
censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o
próprio Estado.
Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução
Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de
1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
2 de novembro de 2017 às 11:15
Muito boa as explicações... Entende-se claramente o conteúdo. Parabéns