Técnica e alienação
Retomemos a história do aprendiz de
feiticeiro. Pelo menos duas interpretações podem ser feitas dessa lenda.
A técnica é um poder cujas consequências nem
sempre aparecem muito claramente no início do processo, por isso convém não
desprezar a sabedoria daqueles que desejam discutir sobre os fins a que ela
se destina, Isso significa que o técnico não pode ser apenas técnico, mas deve
ser capaz de refletir a respeito dos valores que envolvem a aplicação da
técnica. Por exemplo, a industrialização não-planejada transforma o mito do progresso
no pesadelo da poluição e do desequilíbrio ecológico.
Outra interpretação possível da velha lenda
é que o primeiro sonho do maquinismo foi a libertação do homem das tarefas mais
árduas e repetitivas. No entanto, o que temos observado é a ampliação do
"batalhão de operários" executando ordens mecanicamente sem que tenha
havido significativa redução do tempo de trabalho ou melhoria da qualidade de
vida.
Já em pleno Século das Luzes (séc. XVIII),
Rousseau contrariava as expectativas otimistas que a maioria depositava nas
vantagens do desenvolvimento da técnica, denunciando o avanço da desigualdade
entre os homens. Afinal, o que ainda hoje constatamos é que os frutos da
tecnologia não têm sido distribuídos de forma igual entre os homens.
Na segunda metade do século XVIII, operários
da região de Lancashire, na Inglaterra, fizeram diversos movimentos durante os
quais era destruído o maquinário das instalações fabris. Os "quebradores
de máquinas", na verdade, já percebiam, com aflição, as profundas
modificações decorrentes da passagem da produção artesanal e doméstica para a
fabril.
É típico do trabalho artesanal o conhecimento
de todas as fases da produção, mas a mecanização desenvolveu a tendência à
divisão do trabalho. Essa fragmentação culmina no século XX com a produção em
linha de montagem, quando o operário perde a visão global do que está sendo
produzido. Com essa nova organização do trabalho, o operário perde o saber
técnico, cabendo a ele apenas executar o que foi concebido e planejado em outro
setor, acentuando-se assim a separação entre concepção e execução do trabalho.
Em decorrência disso surge a figura do técnico especialista, de saber
qualificado, como engenheiros, administradores etc.
No desenvolvimento do sistema capitalista, o
operário confinado à fábrica perde os instrumentos de trabalho, a posse do
produto e, em consequência, perde a autonomia. Deixa de ser o centro de si
mesmo: não escolhe o salário, nem o horário, nem o ritmo de trabalho. Com isso
se dá uma grande inversão, em que o produto passa a valer mais que o próprio
operário, uma vez que aquele determina as condições de trabalho deste e até as
demissões e contratações. Trata-se de uma inversão porque aquilo que é inerte
(a coisa, o produto) passa a "ter vida" e o que tem vida (o homem) se
transforma em "coisa". Assim se configura o que chamamos trabalho
alienado.
Etimologicamente, a palavra alienação vem do
latim alienare, alienus, que significa "que pertence a um outro".
Alienar, portanto, é tomar alheio, é transferir para outrem o que é seu.
Ora, se admitirmos que, pelo trabalho, ao
mesmo tempo que o homem faz uma coisa também se faz a si mesmo, o trabalho
alienado é condição de desumanização, pois os trabalhadores perdem o controle
do produto e consequentemente de si mesmos, tornando-se incapazes de atuar no
mundo de forma crítica.
Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas
de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).
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