"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Técnica e alienação


Retomemos a história do aprendiz de feiticeiro. Pelo menos duas interpretações podem ser feitas dessa lenda.
A técnica é um poder cujas conse­quências nem sempre aparecem mui­to claramente no início do processo, por isso convém não desprezar a sa­bedoria daqueles que desejam discu­tir sobre os fins a que ela se destina, Isso significa que o técnico não pode ser apenas técnico, mas deve ser capaz de refletir a respeito dos valores que en­volvem a aplicação da técnica. Por exemplo, a industrialização não-planejada transforma o mito do pro­gresso no pesadelo da poluição e do desequilíbrio ecológico.
Outra interpretação possível da ve­lha lenda é que o primeiro sonho do maquinismo foi a libertação do homem das tarefas mais árduas e repetitivas. No entanto, o que temos observado é a ampliação do "batalhão de operários" executando ordens mecanicamente sem que tenha havido significativa redução do tempo de trabalho ou melhoria da qualidade de vida.  

Já em pleno Século das Luzes (séc. XVIII), Rousseau contrariava as expec­tativas otimistas que a maioria depositava nas vantagens do desenvolvimen­to da técnica, denunciando o avanço da desigualdade entre os homens. Afinal, o que ainda hoje constatamos é que os frutos da tecnologia não têm sido dis­tribuídos de forma igual entre os ho­mens.
Na segunda metade do século XVIII, operários da região de Lancashire, na Inglaterra, fizeram diversos movimen­tos durante os quais era destruído o maquinário das instalações fabris. Os "quebradores de máquinas", na verda­de, já percebiam, com aflição, as pro­fundas modificações decorrentes da passagem da produção artesanal e do­méstica para a fabril.
É típico do trabalho artesanal o co­nhecimento de todas as fases da pro­dução, mas a mecanização desenvolveu a tendência à divisão do trabalho. Essa fragmentação culmina no século XX com a produção em linha de montagem, quando o operário perde a visão global do que está sendo produzido. Com es­sa nova organização do trabalho, o ope­rário perde o saber técnico, cabendo a ele apenas executar o que foi concebido e planejado em outro setor, acentuando-se assim a separação entre concepção e execução do trabalho. Em decorrên­cia disso surge a figura do técnico espe­cialista, de saber qualificado, como en­genheiros, administradores etc.
No desenvolvimento do sistema ca­pitalista, o operário confinado à fábri­ca perde os instrumentos de trabalho, a posse do produto e, em consequên­cia, perde a autonomia. Deixa de ser o centro de si mesmo: não escolhe o sa­lário, nem o horário, nem o ritmo de trabalho. Com isso se dá uma grande inversão, em que o produto passa a va­ler mais que o próprio operário, uma vez que aquele determina as condições de trabalho deste e até as demissões e contratações. Trata-se de uma inversão porque aquilo que é inerte (a coisa, o produto) passa a "ter vida" e o que tem vida (o homem) se transforma em "coisa". Assim se configura o que chama­mos trabalho alienado.
Etimologicamente, a palavra aliena­ção vem do latim alienare, alienus, que significa "que pertence a um outro". Alienar, portanto, é tomar alheio, é transferir para outrem o que é seu.
Ora, se admitirmos que, pelo traba­lho, ao mesmo tempo que o homem faz uma coisa também se faz a si mesmo, o tra­balho alienado é condição de desumanização, pois os trabalhadores perdem o controle do produto e consequente­mente de si mesmos, tornando-se in­capazes de atuar no mundo de forma crítica.

Fonte:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).

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