"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Técnica e ciência


Um esforço imenso é despendido pe­lo homem no domínio da natureza. Na medida do possível, alguns reservam para si as funções leves e encarregam outros do trabalho mais penoso. A pre­dominância de escravos e servos no exercício das atividades manuais sem­pre levou à desvalorização desse tipo de trabalho, enquanto apenas as ativi­dades intelectuais eram consideradas verdadeiramente dignas do homem.
Os romanos, retomando a tradição da Grécia, chamavam de ócio (otium) não propriamente a ausência de ação, mas o ocupar-se com as ciências, as ar­tes, o trato social, o governo, o lazer produtivo. Ao ócio opunham o negócio (o nec otium, ou seja, a negação do otium), enquanto atividade que tem por função satisfazer as necessidades ele­mentares. Evidentemente é o ócio que constitui para eles o ser próprio do ho­mem, e alcançá-lo era privilégio reser­vado a poucos.  

Tal maneira de pensar supõe a exis­tência da divisão social com a manuten­ção do sistema escravista ou da servi­dão. Mesmo Aristóteles sabia disso, e diz, em sua Política, que haveria escra­vidão enquanto as lançadeiras não tra­balhassem sozinhas.
A partir do final da Idade Média sur­ge uma nova concepção a respeito da importância da técnica. Antes desvalo­rizada, ela torna-se o instrumento ade­quado para transformar o homem em "mestre e senhor da natureza".
Averiguando as circunstâncias so­ciais e econômicas que possibilitaram uma mudança tão decisiva para a his­tória da humanidade, encontramos no surgimento da burguesia os elementos que tornaram necessária a nova manei­ra de pensar e agir. Os burgueses, li­gados ao artesanato e comércio, valo­rizavam o trabalho e tinham espírito empreendedor. Ora, o sucesso e enri­quecimento desse novo segmento so­cial passam a exigir cada vez mais o concurso da técnica para a ampliação dos negócios: construção de navios mais ágeis, utilização da bússola para a orientação nos mares em busca de no­vos portos, aperfeiçoamento dos reló­gios (tempo é dinheiro!). Um bom exemplo do efeito transformador da téc­nica é a pólvora. Conhecida há muito nas civilizações orientais, como a Chi­na, onde era utilizada na confecção de fogos de artifício, ao ser levada para a Europa, irá redimensionar as artes bé­licas, ao ser usada em canhões para o ataque aos até então quase inacessíveis castelos da nobreza.
A valorização da técnica altera a con­cepção de ciência. Se antes o saber era contemplativo, ou seja, voltado para a compreensão desinteressada da realida­de, o novo homem busca o saber ativo, o conhecimento capaz de atuar sobre o mundo, transformando-o. Essa nova mentalidade permite o advento da ciên­cia moderna. Galileu, ao tornar possí­vel a Revolução Científica no século XVII, estabelece fecunda aliança entre o labor da mente e o tra­balho das mãos, o que irá marcar a re­lação entre ciência e técnica:
• A técnica torna a ciência cada vez mais precisa e objetiva. Por exemplo, o termômetro mede a temperatura me­lhor do que o faz a nossa pele.
• A ciência é um conhecimento rigo­roso capaz de provocar a evolução das técnicas; a tecnologia moderna nada mais é do que ciência aplicada. Por exemplo, os estudos de termologia dão con­dições para a construção de termôme­tros mais precisos.
São profundas as alterações provo­cadas pelo advento da tecnologia em to­dos os setores da vida humana. Pode-se dizer que, em nenhum lugar e em tempo algum da história da humanida­de, ocorreram transformações tão fun­damentais e com tal rapidez. Por maio­res que sejam as diferenças entre as cul­turas do Antigo Oriente do terceiro mi­lênio a.C e a da Europa do século XV, nada se compara à transformação radi­cal no modo de vida que se opera do século XVIII ao final do século XX: em apenas trezentos anos, a ciência e a tec­nologia alteraram fundamentalmente a maneira de viver e de pensar do ho­mem contemporâneo.

Fonte:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).

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