A experiência da linguagem
Dizer que somos seres falantes
significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma
instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres
sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao
pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a
habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa:
emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como,
experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, idéias.
Após o caminho feito até aqui,
podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns
acréscimos.
Em primeiro lugar, teremos que
especificar melhor que tipo de signo é o signo linguístico. Por que uma palavra
é diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é
a diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra fumaça,
que pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A
palavra fumaça, porém, é um símbolo, isto é, algo que indica,
representa, exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela.
O símbolo é um análogo (a
bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada,
representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que
não são palavras: coisas materiais, idéias, pessoas, valores, seres
inexistentes, etc. A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em
relação com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
Em segundo lugar, temos que
especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou
denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos
indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente,
diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres
humanos. Mas como se dá essa relação?
Essa pergunta, como vimos, era
central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi
responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da
Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com
elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se
numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e
explicam verdadeiramente a realidade?
Tradicionalmente, dizia-se que a
linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal <->
coisa indicada (realidade) ->
signo verbal <->
ideia, conceito, valor (pensamento) ->
No entanto, é possível perceber
que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo
verbal indica alguma coisa ou alguma ideia, pois, se ele fosse simplesmente
denotativo ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação,
isto é, uma mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes.
Tomemos um exemplo a que já nos
referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo
filósofo alemão Frege. “Estrela da manhã” e “estrela da tarde” indicam Vênus.
Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela matutina e na
estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas essas expressões se
refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus muda
e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta.
Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é,
referem-se aos sentidos dessa coisa.
Imaginemos ou recordemos a
leitura de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor
escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a idéias
que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém,
o livro vai ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira,
mudamos idéias que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria
e história própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente
daquele com o qual estamos habituados a usá-las todo dia.
Uma realidade foi criada e
penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é
possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem
sinais para indicar coisas e idéias já existentes? Com o romance descobrimos
que as palavras se referem a significações, inventam significações,
criam significações.
Imaginemos ou recordemos um diálogo.
Quantas vezes conversando com alguém, dizemos: “Puxa! Eu nunca tinha pensado
nisso!”, ou então: “Você sabe que, agora, eu entendo melhor uma ideia que
tinha, mas que não entendia muito bem?”, ou ainda: “Você me fez compreender uma
coisa que eu sabia e não sabia que sabia”.
Como essas frases são possíveis?
É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto
falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto
os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar
porque se refere a significados, tanto os já conhecidos por outros
quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos
conversando.
Esses exemplos nos levam a
considerar a linguagem sob uma forma ternária:
palavra ou signo
significante <-> sentido ou significação; significado <->
realidade ou mundo (coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas,
culturais ->->
O mundo suscita sentidos e
palavras, as significações levam à criação de novas expressões linguísticas, a
linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas. Há um
vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as
significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são
inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros.
A linguagem:
● refere-se ao mundo através das
significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da
palavra;
● relaciona-se com sentidos já
existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o
pensamento através das palavras;
● exprime e descobre
significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;
● tem o poder de suscitar
significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e,
por isso, a literatura é possível.
A linguagem revela nosso corpo
como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e
significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como
dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As
palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:
A palavra, longe de ser um
simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula
significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito,
mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem não traduz
imagens verbais de origem motora e sensorial, nem representa idéias
feitas por um pensamento silencioso, mas encarna as significações.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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