"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A experiência da linguagem


Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa: emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como, experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, idéias.
Após o caminho feito até aqui, podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos.  

Em primeiro lugar, teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo linguístico. Por que uma palavra é diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra fumaça, que pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A palavra fumaça, porém, é um símbolo, isto é, algo que indica, representa, exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela.
O símbolo é um análogo (a bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada, representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são palavras: coisas materiais, idéias, pessoas, valores, seres inexistentes, etc. A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
Em segundo lugar, temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como se dá essa relação?
Essa pergunta, como vimos, era central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e explicam verdadeiramente a realidade?
Tradicionalmente, dizia-se que a linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:

signo verbal  <->  coisa indicada (realidade)
signo verbal  <->  ideia, conceito, valor (pensamento)

No entanto, é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma ideia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes.
Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege. “Estrela da manhã” e “estrela da tarde” indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas essas expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta. Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é, referem-se aos sentidos dessa coisa.
Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a idéias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos idéias que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e história própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usá-las todo dia.
Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem sinais para indicar coisas e idéias já existentes? Com o romance descobrimos que as palavras se referem a significações, inventam significações, criam significações.
Imaginemos ou recordemos um diálogo. Quantas vezes conversando com alguém, dizemos: “Puxa! Eu nunca tinha pensado nisso!”, ou então: “Você sabe que, agora, eu entendo melhor uma ideia que tinha, mas que não entendia muito bem?”, ou ainda: “Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia”.
Como essas frases são possíveis? É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se refere a significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.
Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária:
palavra ou signo significante  <->  sentido ou significação; significado  <->  realidade ou mundo (coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais
O mundo suscita sentidos e palavras, as significações levam à criação de novas expressões linguísticas, a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas. Há um vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros.
A linguagem:
● refere-se ao mundo através das significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da palavra;
● relaciona-se com sentidos já existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o pensamento através das palavras;
● exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;
● tem o poder de suscitar significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e, por isso, a literatura é possível.
A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:

A palavra, longe de ser um simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito, mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.

A linguagem não traduz imagens verbais de origem motora e sensorial, nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso, mas encarna as significações.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

0 Response to "A experiência da linguagem"