A linguística e a linguagem
Durante o século XIX, o estudo
da linguagem ou linguística tinha como preocupação encontrar a origem da
linguagem e das línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua
como resultado ou efeito de causas situadas no passado.
A linguagem era estudada sob
duas perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo
estudo das raízes, com o propósito de chegar a uma única língua
original, mãe ou matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que
estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias linguísticas e chegar à língua-mãe original.
Nesses estudos, retomava-se a
discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era
comum aos filólogos e gramáticos a ideia de que as línguas se transformam no
tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralinguísticos
(migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).
Tais estudos, porém, viram-se
diante de problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o
aparecimento do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural
e o singular, aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as
línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos.
Essa descoberta teve resultados
curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que
cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o
espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos
(como a alemã); línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o
latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o “caráter da língua” segundo as
fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.
A partir do século XX, uma nova
concepção da linguagem foi elaborada pela linguística e seus pontos principais
são:
● a linguagem é constituída pela
distinção entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e
um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios
próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua, tendo
existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da
língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra
ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a
minha;
● a língua é uma totalidade
dotada de sentido no qual o todo confere sentido às partes, isto é, as partes
não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo
da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por
exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença
desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo
qual não operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses
usam l indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l
ou r; os japoneses usam r indiferentemente para todas as
palavras, sejam elas em l ou r). Os signos são os elementos da
língua; são valores e não coisas ou entidades, isto é, são o que valem por sua
posição e por sua diferença com relação aos demais signos;
● numa língua, distinguem-se
signo e significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal
material da língua (r, l, p, b, q, g,
por exemplo), enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais
(afetivos, volitivos, perceptivos, imaginativos, evocativos, literários,
científicos, retóricos, filosóficos, políticos, religiosos, etc.) veiculados
pelos signos; o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos
(palavras, frases, orações, proposições, enunciados) que permitem a expressão
dos significados e garantem a comunicação;
● a relação dos signos ou
significantes com as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez
constituída a língua como sistema de relações entre signos/significantes e
significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou
comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes da língua.
Assim, por exemplo, a distinção entre pa e ba, pata e bata
é convencional, mas uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e
inquestionável;
● como as partes (signos ou
significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o
todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas
por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças
internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em
português, existem os signos p e b, d e t porque
suas diferenças são pertinentes para o sentido das palavras (dizer pata
e bata, dente e tente é dizer sentidos diferentes); também
existe a oposição pertinente entre o r e o l, mas tal oposição ou
diferença não existe em japonês e em chinês e por isso, como vimos, tais signos
não existem nessas línguas.
Por relação com sua própria
língua, quando um japonês fala o português, é levado a usar sempre o r
(que corresponde a um som ou signo diferencial existente em japonês, isto é,
faz sentido em japonês) e a substituir o l por r. Quando um
chinês fala o português ocorre exatamente o contrário, prevalece o l
porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa, e o r
não. Em inglês, não existe o signo-som ão e, assim, quando um inglês
fala o português, tende a usar an e am porque são signos-sons que
fazem sentido em inglês. A língua, portanto, é feita dessas diferenças internas
e por isso se diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma
estrutura diacrítica;
● a língua é um código
(conjunto de regras que permitem produzir informação e comunicação) e se
realiza através de mensagens, isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que
veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular (a mensagem
possui um emissor, aquele que emite ou envia a mensagem, e um receptor,
aquele que recebe e decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
● o sujeito falante possui duas
capacidades: a competência (isto é, sabe usar a língua) e a performance
(isto é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é
a participação do sujeito em uma comunidade linguística e a performance são os
atos de linguagem que realiza;
● a língua se realiza em duas
dimensões: a sincronia, ou seja, o todo da língua tomado na
simultaneidade ou no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou
seja, a língua vista sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de
sua história;
● a língua é inconsciente, isto
é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus
princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a
empregamos sem necessidade de conhecê-la cientificamente.
Alguns exemplos poderão
ajudar-nos a compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de
xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por
diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código
com suas regras próprias, princípios e leis, e cada partida é a maneira como
jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do
jogo (a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a
língua respeitando o código, mas sem conhecê-lo conscientemente, enquanto os
jogadores precisam conhecer o código para poder jogar).
O jogo existe antes e depois de
cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados
diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os
jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os
lances um do outro, respondendo a cada um deles.
A linguística veio mostrar algo
muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou
traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os
intelectualistas.
Por exemplo, em inglês, é
possível dizer “The man I love”. Quando traduzimos para o português temos: “O
homem que amo”. Observamos que, em inglês, parece “faltar” uma palavra: o
“que”. Notamos também que em inglês parece “sobrar” uma palavra: o “I”, o “eu”,
que não usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta
e nem sobra nada.
Este sentimento de falta ou
sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário,
mas de estrutura linguística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese
e da palavra francesa fromage para o português, queijo, temos a
impressão de que passamos sem problema de uma língua para outra. Mas não é o
caso.
Quando um inglês usa cheese,
ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo
mais duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno,
ao dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo
da região onde mora, da hora e do dia em que vai comer o queijo, sempre
acompanhado de pão e vinho.
Para um inglês e para um
francês, queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para
nós, brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com
goiabada ou com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim
dizer cheese não é dizer fromage nem queijo; dizer fromage
não é dizer cheese nem queijo; dizer queijo não é dizer cheese
nem fromage.
Esse segundo exemplo explica o
que os linguistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um
signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional,
mas, uma vez criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese
é cheese e não é fromage nem queijo).
Esse exemplo nos mostra também
que uma língua é algo social, histórico, determinado por condições específicas
de uma sociedade e de uma cultura.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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