Empiristas e intelectualistas diante da linguagem
Para os empiristas, a linguagem
é um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição
e que constituem imagens verbais (as palavras).
As imagens corporais são de dois
tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando
aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos
anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando,
graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a
de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer
a grafia dos sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em
função da freqüência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa
capacidade motriz e sensorial. A palavra ou imagem verbal é uma síntese de
imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.
O que levou a essa concepção
empirista da linguagem foi o estudo médico de “perturbações da linguagem”: a
afasia (incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na
língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas
palavras); a surdez verbal (ouvir as palavras sem conseguir compreendê-las) e a
cegueira verbal (ler sem conseguir entender).
Os médicos que estudaram essas
perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que,
portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual
não temos consciência (desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos
consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o
sentido das palavras. A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos
psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.
Os intelectualistas, porém,
apresentam uma concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a possibilidade
para falar, ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia e fisiologia)
afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de
nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é apenas a tradução auditiva, oral,
gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A linguagem é
um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para
transmitir e comunicar idéias abstratas e valores. A palavra, dizem eles, é uma
representação de um pensamento, de uma ideia ou de valores, sendo produzida
pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade.
O pensamento puro seria
silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas
poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que o pensamento
procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas,
porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o
mesmo e tal sentido é a ideia formada pelo pensamento para representar ou
indicar as coisas.
A grande prova dos intelectualistas
contra os empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida cega, surda e
muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e
as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a linguagem
dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais, Helen Keller
jamais teria chegado à linguagem.
Mas chegou. E chegou quando
compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das
mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual
segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água;
quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra
sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser
um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma
atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de
pensamentos.
As concepções empirista e
intelectualista, apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem
como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos
linguísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas;
2. ambas consideram a linguagem
como um instrumento de representação das coisas e das idéias, ou seja, as
palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo.
Esses dois pontos de
concordância fazem com que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos
conotativos ou a função conotativa da linguagem seja considerada algo
perturbador e negativo. Em outros termos, o fato de que a comunicação verbal se
realize com as palavras assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala
e ouve, escreve e lê, do contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é
considerado perturbador porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e
as idéias são sempre o que elas são, de modo que as palavras deveriam ter
sempre um só e mesmo sentido para indicar claramente as coisas e representar
claramente as idéias.
Por esse motivo, periodicamente,
aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em “purificar” a
linguagem para que ela sirva docilmente às representações conceituais. Tais
correntes julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e,
particularmente, a da matemática e a da física.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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