A alienação social
Às três feridas narcísicas mencionadas por Freud, precisamos
acrescentar mais uma: a que nos foi infligida por Marx com a noção de ideologia.
Para compreendê-la, precisamos primeiro compreender o fenômeno da alienação
social.
Marx era filósofo, advogado e historiador, e interessou-se
por um estudo feito por um outro filósofo, Feuerbach. Este investigara o modo
como se formam as religiões, isto é, o modo como os seres humanos sentem
necessidade de oferecer uma explicação para a origem e a finalidade do mundo.
Ao buscar essa explicação, os humanos projetam fora de si
um ser superior dotado das qualidades que julgam as melhores: inteligência,
vontade livre, bondade, justiça, beleza, mas as fazem existir nesse ser
superior como superlativas, isto é, ele é onisciente e onipotente, sabe tudo,
faz tudo, pode tudo. Pouco a pouco, os humanos se esquecem de que foram os
criadores desse ser e passam a acreditar no inverso, ou seja, que esse ser foi
quem os criou e os governa. Passam a adorá-lo, prestar-lhe culto, temê-lo. Não
se reconhecem nesse Outro que criaram. Em latim, “outro” se diz: alienus.
Os homens se alienam e Feuerbach designou esse fato com o nome de alienação.
A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou
produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse
por si mesma e em si mesma, deixam-se governar por ela como se ela tivesse
poder em si e por si mesma, não se reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um
ser-outro, separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles.
Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa, mas
investigou sobretudo a alienação social. Interessou-se em compreender as causas
pelas quais os homens ignoram que são os criadores da sociedade, da política,
da cultura e agentes da História. Interessou-se em compreender por que os
humanos acreditam que a sociedade não foi instituída por eles, mas por vontade
e obra dos deuses, da Natureza, da Razão, em vez de perceberem que são eles
próprios que, em condições históricas determinadas, criam as instituições
sociais – família, relações de produção e de trabalho, relações de troca,
linguagem oral, linguagem escrita, escola, religião, artes, ciências, filosofia
– e as instituições políticas – leis, direitos, deveres, tribunais, Estado,
exército, impostos, prisões. A ação sociopolítica e histórica chama-se práxis
e o desconhecimento de suas origens e de suas causas, alienação.
Por que os seres humanos não se reconhecem como sujeitos
sociais, políticos, históricos, como agentes e criadores da realidade na qual
vivem? Por que, além de não se perceberem como sujeitos e agentes, os humanos
se submetem às condições sociais, políticas, culturais, como se elas tivessem
vida própria, poder próprio, vontade própria e os governassem, em lugar de
serem controladas e governadas por eles? Por que existe a alienação social? Por
que os homens se deixam dominar pela sua própria obra ou criação histórica? Por
que filósofos, teólogos, cientistas (portanto, o sujeito do conhecimento)
elaboram teorias que reforçam a alienação? Por que filósofos dizem que a
sociedade é produzida pela Natureza? Por que teólogos dizem que a família e o
Estado existem por vontade de Deus? Por que os cientistas afirmam que a
sociedade é racional e criada pela Razão Universal?
Para compreender o fenômeno da alienação, Marx estudou o
modo como as sociedades são produzidas historicamente pela práxis dos seres
humanos.
Verificou que, historicamente, uma sociedade (pequena,
grande, tribal, imperial, não importa) sempre começa por uma divisão e que essa
divisão organiza todas as relações sociais que serão instituídas a seguir.
Trata-se da divisão social do trabalho. Na luta pela sobrevivência, os seres
humanos se agrupam para explorar os recursos da Natureza e dividem as tarefas:
tarefas dos homens adultos, tarefas das mulheres adultas, tarefas dos homens
jovens, tarefas das mulheres jovens, tarefas das crianças e dos idosos. A
partir dessa divisão, organizam a primeira instituição social: a família,
na qual o homem adulto, na qualidade de pai, torna-se chefe e domina a mulher
adulta, sua esposa e mãe de seus filhos, os quais também são dominados pelo
pai.
As famílias trabalham e trocam entre si os produtos do
trabalho. Surge uma segunda instituição social: a troca, isto é, o comércio.
Algumas famílias conquistam terras melhores do que outras e conseguem colheitas
ou gado em maior quantidade que outras, trocando seus produtos por uma
quantidade maior que a de outras. Ficam mais ricas. As muito pobres, não tendo
conseguido produzir nada ou muito pouco, vêem-se obrigadas a trabalhar para as
mais ricas em troca de produtos para a sobrevivência. Começa a surgir uma
terceira instituição social: o trabalho servil, que desembocará na escravidão.
Os mais ricos e poderosos reúnem-se e decidem controlar o
conjunto de famílias, distribuindo entre si os poderes e excluindo algumas
famílias de todo poder. Começa a surgir uma quarta instituição social: o poder
político, de onde virá o Estado.
Nessa altura, os seres humanos já começaram a explicar a
origem e a finalidade do mundo, já elaboraram mitos e ritos. As famílias ricas
e poderosas dão a alguns de seus membros autoridade exclusiva para narrar mitos
e celebrar ritos. Criam uma outra instituição social: a religião,
dominada por sacerdotes saídos das famílias poderosas e que, por terem a
autoridade para se relacionar com o sagrado, tornam-se temidos e venerados pelo
restante da sociedade. São um novo poder social.
Os vários grupos de famílias dirigentes disputam entre si
terras, animais e servos e dão início a uma nova instituição social: a guerra,
com a qual os vencidos se tornam escravos dos vencedores, e o poder econômico,
social, militar, religioso e político se concentra ainda mais em poucas mãos.
Como escreveu Maquiavel, toda sociedade é constituída pela divisão entre o
desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido
nem comandado.
Com essa descrição, Marx observou que a sociedade nasce
pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho,
divisão social do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas,
divisão social do poder econômico, divisão social do poder militar, divisão
social do poder religioso e divisão social do poder político. Por que divisão?
Porque em todas as instituições sociais (família, trabalho, comércio, guerra,
religião, política) uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, idéias e
saberes, terras, trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não possui
nada disso, estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída.
Esse conjunto estruturado de divisões torna-se cada vez
mais complexo, intrincado, numeroso, multiplicando-se em muitas outras
divisões, sob a forma de numerosas instituições sociais e acabam por revelar a
estrutura fundamental das sociedades como divisão social das classes sociais. A
esse conjunto (tanto simples quanto complexo) de instituições nascidas da
divisão social Marx deu o nome de condições materiais da vida social e
política. Por que materiais? Porque se referem ao conjunto de práticas sociais
pelas quais os homens garantem sua sobrevivência por meio do trabalho e da
troca dos produtos do trabalho, e que constituem a economia.
A variação das condições materiais de uma sociedade
constitui a História dessa sociedade e Marx as designou como modos de
produção. A História é a mudança, passagem ou transformação de um modo de
produção para outro. Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre
dos seres humanos, mas acontece de acordo com condições econômicas, sociais e
culturais já estabelecidas, que podem ser alteradas de uma maneira também
determinada, graças à práxis humana diante de tais condições dadas.
O fato de que a mudança de uma sociedade ou a mudança
histórica se faça em condições determinadas, levou Marx a afirmar que: “Os
homens fazem a História, mas o fazem em condições determinadas”, isto é, que
não foram escolhidas por eles. Por isso também, ele disse: “Os homens fazem a
História, mas não sabem que a fazem”.
Estamos, aqui, diante de uma situação coletiva muito
parecida com a que encontramos no caso de nossa vida psíquica individual. Assim
como julgamos que nossa consciência sabe tudo, pode tudo, faz o que pensa e
quer, mas, na realidade, está determinada pelo inconsciente e ignora tal
determinação, assim também, na existência social, os seres humanos julgam que
sabem o que é a sociedade, dizendo que Deus ou a Natureza ou a Razão a criaram,
instituíram a política e a História, e que os homens são seus instrumentos; ou,
então, acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam porque são
indivíduos livres, autônomos e com poder para mudar o curso das coisas como e
quando quiserem.
Por exemplo, quando alguém diz que uma pessoa é pobre
porque quer, porque é preguiçosa, ou perdulária, ou ignorante, está imaginando
que somos o que somos somente por nossa vontade, como se a organização e a
estrutura da sociedade, da economia, da política não tivesse qualquer peso
sobre nossas vidas. A mesma coisa acontece quando alguém diz ser pobre “pela
vontade de Deus” e não por causa das condições concretas em que vive. Ou quando
faz uma afirmação racista, segundo a qual “a Natureza fez alguns superiores e
outros inferiores”.
A alienação social é o desconhecimento das condições
histórico-sociais concretas em que vivemos, produzidas pela ação humana também
sob o peso de outras condições históricas anteriores e determinadas. Há uma
dupla alienação: por um lado, os homens não se reconhecem como agentes e
autores da vida social com suas instituições, mas, por outro lado e ao mesmo
tempo, julgam-se indivíduos plenamente livres, capazes de mudar suas vidas
individuais como e quando quiserem, apesar das instituições sociais e das
condições históricas. No primeiro caso, não percebem que instituem a
sociedade; no segundo caso, ignoram que a sociedade instituída determina
seus pensamentos e ações.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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