Os procedimentos da ideologia
Como procede a ideologia para obter esse fantástico
resultado? Em primeiro lugar, opera por inversão, isto é, coloca os
efeitos no lugar das causas e transforma estas últimas em efeitos. Ela opera
como o inconsciente: este fabrica imagens e sintomas; aquela fabrica idéias e
falsas causalidades.
Por exemplo, o senso comum social afirma que a mulher é um
ser frágil, sensitivo, intuitivo, feito para as doçuras do lar e da maternidade
e que, por isso, foi destinada, por natureza, para a vida doméstica, o cuidado
do marido e da família. Assim o “ser feminino” é colocado como causa da “função
social feminina”.
Ora, historicamente, o que ocorreu foi exatamente o
contrário: na divisão sexual-social do trabalho e na divisão dos poderes no
interior da família, atribuiu-se à mulher um lugar levando-se em conta o lugar
masculino; como este era o lugar do domínio, da autoridade e do poder, deu-se à
mulher o lugar subordinado e auxiliar, a função complementar e, visto que o
número de braços para o trabalho e para a guerra aumentava o poderio do chefe
da família e chefe militar, a função reprodutora da mulher tornou-se
imprescindível, trazendo como conseqüência sua designação prioritária para a
maternidade.
Estabelecidas essas condições sociais, era preciso
persuadir as mulheres de que seu lugar e sua função não provinham do modo de
organização social, mas da Natureza, e eram excelentes e desejáveis. Para isso,
montou-se a ideologia do “ser feminino” e da “função feminina” como naturais e
não como históricos e sociais. Como se observa, uma vez implantada uma
ideologia, passamos a tomar os efeitos pelas causas.
A segunda maneira de operar da ideologia é a produção do imaginário
social, através da imaginação reprodutora. Recolhendo as imagens diretas e
imediatas da experiência social (isto é, do modo como vivemos as relações
sociais), a ideologia as reproduz, mas transformando-as num conjunto coerente,
lógico e sistemático de idéias que funcionam em dois registros: como
representações da realidade (sistema explicativo ou teórico) e como normas e
regras de conduta e comportamento (sistema prescritivo de normas e valores).
Representações, normas e valores formam um tecido de imagens que explicam toda
a realidade e prescrevem para toda a sociedade o que ela deve e como deve
pensar, falar, sentir e agir. A ideologia assegura, a todos, modos de entender
a realidade e de se comportar nela ou diante dela, eliminando dúvidas,
ansiedades, angústias, admirações, ocultando as contradições da vida social,
bem como as contradições entre esta e as idéias que supostamente a explicam e
controlam.
Enfim, uma terceira maneira de operação da ideologia é o silêncio.
Um imaginário social se parece com uma frase onde nem tudo é dito, nem pode ser
dito, porque, se tudo fosse dito, a frase perderia a coerência, tornar-se-ia
incoerente e contraditória e ninguém acreditaria nela. A coerência e a unidade
do imaginário social ou ideologia vêm, portanto, do que é silenciado (e, sob
esse aspecto, a ideologia opera exatamente como o inconsciente descrito pela
psicanálise).
Por exemplo, a ideologia afirma que o adultério é crime
(tanto assim que homens que matam suas esposas e os amantes delas são
considerados inocentes porque praticaram um ato em nome da honra), que a
virgindade feminina é preciosa e que o homossexualismo é uma perversão e uma
doença grave (tão grave que, para alguns, Deus resolveu punir os homossexuais
enviando a peste, isto é, a AIDS).
O que está sendo silenciado pela ideologia? Por que, em
nossa sociedade, o vínculo entre sexo e procriação é tão importante (coisa que
não acontece em todas as sociedades, mas apenas em algumas, como a nossa)?
Nossa sociedade exige a procriação legítima e legal – a que se realiza pelos
laços do casamento -, porque ela garante, para a classe dominante, a
transmissão do capital aos herdeiros. Assim sendo, o adultério e a perda da
virgindade são perigosos para o capital e para a transmissão legal da riqueza;
por isso, o adultério se torna crime e a virgindade é valorizada como virtude
suprema das mulheres jovens.
Em nossa sociedade, a reprodução da força de trabalho se
faz pelo aumento do número de trabalhadores e, portanto, a procriação é
considerada fundamental para o aumento do capital que precisa da mão-de-obra.
Por esse motivo, toda sexualidade que não se realizar com finalidade
reprodutiva será considerada anormal, perversa e doentia, donde a condenação do
homossexualismo. A ideologia, porém, perderia sua força e coerência se dissesse
essas coisas e por isso as silencia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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