As três formas da alienação social
Podemos falar em três grandes formas de alienação
existentes nas sociedades modernas ou capitalistas:
1. A alienação social, na qual os humanos não se
reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas
atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural,
divino ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando que, por sua
própria vontade e inteligência, podem mais do que a realidade que os
condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o outro (alienus), algo
externo a nós, separado de nós, diferente de nós e com poder total ou nenhum
poder sobre nós.
2. A alienação econômica, na qual os produtores não
se reconhecem como produtores, nem se reconhecem nos objetos produzidos por seu
trabalho. Em nossas sociedades modernas, a alienação econômica é dupla:
Em primeiro lugar, os trabalhadores, como classe social,
vendem sua força de trabalho aos proprietários do capital (donos das terras,
das indústrias, do comércio, dos bancos, das escolas, dos hospitais, das frotas
de automóveis, de ônibus ou de aviões, etc.). Vendendo sua força de trabalho no
mercado da compra e venda de trabalho, os trabalhadores são mercadorias e, como
toda mercadoria, recebem um preço, isto é, o salário. Entretanto, os
trabalhadores não percebem que foram reduzidos à condição de coisas que
produzem coisas; não percebem que foram desumanizados e coisificados.
Em segundo lugar, os trabalhos produzem alimentos (pelo
cultivo da terra e dos animais), objetos de consumo (pela indústria),
instrumentos para a produção de outros trabalhos (máquinas), condições para a
realização de outros trabalhos (transporte de matérias-primas, de produtos e de
trabalhadores). A mercadoria-trabalhador produz mercadorias. Estas, ao deixarem
as fazendas, as usinas, as fábricas, os escritórios e entrarem nas lojas, nas
feiras, nos supermercados, nos shoppings centers parecem ali estar
porque lá foram colocadas (não pensamos no trabalho humano que nelas está
cristalizado e não pensamos no trabalho humano realizado para que chegassem até
nós) e, como o trabalhador, elas também recebem um preço.
O trabalhador olha os preços e sabe que não poderá adquirir
quase nada do que está exposto no comércio, mas não lhe passa pela cabeça que
foi ele, não enquanto indivíduo e sim como classe social, quem produziu tudo
aquilo com seu trabalho e que não pode ter os produtos porque o preço deles é
muito mais alto do que o preço dele, trabalhador, isto é, o seu salário.
Apesar disso, o trabalhador pode, cheio de orgulho, mostrar
aos outros as coisas que ele fabrica, ou, se comerciário, que ele vende,
aceitando não possuí-las, como se isso fosse muito justo e natural. As
mercadorias deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e passam a ser
vistas como bens em si e por si mesmas (como a propaganda as mostra e oferece).
Na primeira forma de alienação econômica, o trabalhador
está separado de seu trabalho – este é alguma coisa que tem um preço; é um outro
(alienus), que não o trabalhador. Na segunda forma da alienação
econômica, as mercadorias não permitem que o trabalhador se reconheça nelas.
Estão separadas dele, são exteriores a ele e podem mais do que ele. As
mercadorias são igualmente um outro, que não o trabalhador.
3. A alienação intelectual, resultante da separação
social entre trabalho material (que produz mercadorias) e trabalho intelectual
(que produz idéias). A divisão social entre as duas modalidades de trabalho
leva a crer que o trabalho material é uma tarefa que não exige conhecimentos,
mas apenas habilidades manuais, enquanto o trabalho intelectual é responsável
exclusivo pelos conhecimentos. Vivendo numa sociedade alienada, os intelectuais
também se alienam. Sua alienação é tripla:
Primeiro, esquecem ou ignoram que suas idéias estão ligadas
às opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem, isto é, a classe
dominante, e imaginam, ao contrário, que são idéias universais, válidas para
todos, em todos os tempos e lugares.
Segundo, esquecem ou ignoram que as idéias são produzidas
por eles para explicar a realidade e passam a crer que elas se encontram
gravadas na própria realidade e que eles apenas as descobrem e descrevem sob a
forma de teorias gerais.
Terceiro, esquecem ou ignoram a origem social das idéias e
seu próprio trabalho para criá-las; acreditam que as idéias existem em si e por
si mesmas, criam a realidade e a controlam, dirigem ou dominam. Pouco a pouco,
passam a acreditar que as idéias se produzem umas às outras, são causas e
efeitos umas das outras e que somos apenas receptáculos delas ou instrumentos
delas. As idéias se tornam separadas de seus autores, externas a eles,
transcendentes a eles: tornam-se um outro.
As três grandes formas da alienação (social, econômica e
intelectual) são a causa do surgimento, da implantação e do fortalecimento da ideologia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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