A ideologia
A alienação se exprime numa “teoria” do conhecimento
espontânea, formando o senso comum da sociedade. Por seu intermédio, são
imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é diretamente
percebida e vivida.
Um exemplo desse senso comum aparece no caso da
“explicação” da pobreza, em que o pobre é pobre por sua própria culpa
(preguiça, ignorância) ou por vontade divina ou por inferioridade natural. Esse
senso comum social, na verdade, é o resultado de uma elaboração intelectual
sobre a realidade, feita pelos pensadores ou intelectuais da sociedade –
sacerdotes, filósofos, cientistas, professores, escritores, jornalistas,
artistas -, que descrevem e explicam o mundo a partir do ponto de vista da
classe a que pertencem e que é a classe dominante de uma sociedade. Essa
elaboração intelectual incorporada pelo senso comum social é a ideologia.
Por meio dela, o ponto de vista, as opiniões e as idéias de uma das classes
sociais – a dominante e dirigente – tornam-se o ponto de vista e a opinião de
todas as classes e de toda a sociedade.
A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as
divisões sociais e políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças
naturais entre os seres humanos. Indivisão: apesar da divisão social das
classes, somos levados a crer que somos todos iguais porque participamos da
idéia de “humanidade”, ou da idéia de “nação” e “pátria”, ou da idéia de
“raça”, etc. Diferenças naturais: somos levados a crer que as desigualdades
sociais, econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social das
classes, mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades, da
inteligência, da força de vontade maior ou menor, etc.
A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade
fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem,
julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender transformá-las
ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há uma contradição profunda
entre as condições reais em que vivemos e as idéias.
Por exemplo, a ideologia afirma que somos todos cidadãos e,
portanto, temos todos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e
culturais. No entanto, sabemos que isso não acontece de fato: as crianças de
rua não têm direitos; os idosos não têm direitos; os direitos culturais das
crianças nas escolas públicas são inferiores aos das crianças que estão em
escolas particulares, pois o ensino não é de mesma qualidade em ambas; os
negros e índios são discriminados como inferiores; os homossexuais são
perseguidos como pervertidos, etc.
A maioria, porém, acredita que o fato de ser eleitor, pagar
as dívidas e contribuir com os impostos já nos faz cidadãos, sem considerar as
condições concretas que fazem alguns serem mais cidadãos do que outros. A
função da ideologia é impedir-nos de pensar nessas coisas.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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