A vida psíquica
Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a
teoria psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando
algumas técnicas terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui, acompanhar a
história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais idéias
e inovações.
A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas
delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o
ego (ou o isso, o supereu e o eu). Os dois
primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente.
O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos
inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões. Estas são
regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. O id é
a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse princípio do
prazer. É a libido. Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões,
são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas
a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso
corpo.
Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se
diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão
prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os cinco
ou seis anos, ligadas ao desenvolvimento do id: a fase oral, quando o
desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de
alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do
prazer; a fase anal, quando o desejo e o prazer localizam-se
primordialmente no ânus e as excreções, fezes, brincar com massas e com tintas,
amassar barro ou argila, comer coisas cremosas e sujar-se são os objetos do
prazer; e a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o
prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que
excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e
do prazer; para as meninas, o pai.
No centro do id, determinando toda a vida psíquica,
encontra-se o que Freud denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo
incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a
totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas vidas.
O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões
que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente
seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a repressão sexual.
Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um
conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da
imagem do “eu ideal”, isto é, da pessoa moral, boa e virtuosa. O superego ou
censura desenvolve-se num período que Freud designa como período de latência,
situado entre os seis ou sete anos e o início da puberdade ou adolescência.
Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que,
quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho
traçado pelo superego.
O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida
psíquica submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio
da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam
satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego.
O ego, diz Freud, é “um pobre coitado”, espremido entre
três escravidões: os desejos insaciáveis do id, a severidade repressiva do
superego e os perigos do mundo exterior. Por esse motivo, a forma fundamental
da existência para o ego é a angústia. Se se submeter ao id, torna-se
imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois
viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter à realidade do mundo,
será destruído por ele. Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia
existencial. Estamos divididos entre o princípio do prazer (que não conhece
limites) e o princípio da realidade (que nos impõe limites externos e
internos).
Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla:
ao mesmo tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o
id, limitando o poderio do superego. A vida consciente normal é o equilíbrio
encontrado pela consciência para realizar sua dupla função. A loucura (neuroses
e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja porque
o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é
excessivamente fraco.
O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de
manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo indiretamente. A
maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o
inconsciente oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio
do qual ela pode satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são imagens
(isto é, representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário
psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o satisfaz
indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o seio
materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes, uma pessoa amada
no lugar do pai ou da mãe). Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa
amada), o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos, os mais
freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos
desejos inconscientes, de natureza sexual. São a satisfação imaginária do
desejo.
Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num
naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com uma relação sexual
proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um
lapso e diz uma outra que nos surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se
queria dizer. Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando por uma rua e,
sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um
desejo proibido.
A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo-sexual a
todos os objetos e todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos.
Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas,
odiamos e tememos outras. As coisas e os outros são investidos por nosso
inconsciente com cargas afetivas de libido.
É por esse motivo que certas coisas, certos sons, certas
cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor, enquanto outras
nos enchem de bem-estar, sem que o possamos explicar. A origem das simpatias e
antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais tenra infância,
em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações
afetivas fundamentais e o complexo de Édipo.
Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica –
substituições, sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e
pessoas – indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à
consciência possuem dois níveis: o nível do conteúdo manifesto (escada,
mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a pronunciada, no lapso; pé
torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos contrários por coisas e
pessoas) e o nível do conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente
real e oculto (os desejos sexuais).
Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos
manifestos e, portanto, no imaginário. Somente uma análise psíquica e psicológica
desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise),
nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo
manifesto.
Além dos recursos individuais cotidianos que nosso
inconsciente usa para manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos
usados na loucura (nela, os recursos são os sintomas), existe um outro
recurso, de enorme importância para a vida cultural e social, isto é, para a
existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação.
Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados
em uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de
arte, as ciências, a religião, a Filosofia, as técnicas, as instituições
sociais e as ações políticas. Artistas, místicos, pensadores, escritores,
cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e,
portanto, pela realização de obras e pela criação de instituições religiosas,
sociais, políticas, etc.
Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para
realizar sua própria função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em
seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social
ou coletiva. O nazismo é um exemplo de perversão, em vez de sublimação. A
propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das
imagens de prazer, é um outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a
sublimação.
O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é
aquele grau de consciência como consciência passiva e consciência vivida
não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao
contrário, jamais será consciente diretamente, podendo ser captado apenas
indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas
pela psicanálise.
A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às
pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o
conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da
razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a
verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres
humanos têm de si mesmos.
Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a
psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas,
à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que as
enfrente em nome da própria razão e do pensamento. A consciência é frágil, mas
é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e
decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao
conhecimento: somos um caniço pensante.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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