Arte e religião
As duas primeiras manifestações
culturais foram, historicamente, o trabalho e a religião. Ambas instituíram as
primeiras formas da sociabilidade – a vida comunitária – e da autoridade – o
poder religioso. Ambas instituíram os símbolos de organização humana do espaço
e do tempo, do corpo e do espírito. As artes, isto é, as técnicas ou artes
mecânicas, foram, assim, inseparáveis de ambas.
Mais do que isso. Vimos que a
relação com o sagrado, ao organizar o espaço e o tempo e o sentimento da
comunhão ou separação entre os humanos e a Natureza e deles com o divino,
simbolizou o todo da realidade pela sacralização. Assim, todas as atividades
humanas assumiram a forma de rituais: a guerra, a semeadura e a colheita, a
culinária, as trocas, o nascimento e a morte, a doença e a cura, a mudança das
estações, a passagem do dia à noite, ventos e chuvas, o movimento dos astros,
tudo se realiza ritualisticamente, tudo assume a forma de um culto religioso.
A sacralização e a ritualização
da vida fazem com que a medicina, agricultura, culinária, edificações, produção
de utensílios, música, instrumentos musicais, dança, adornos tornem-se ritos ou
elementos de cultos. Semear e colher, caçar e pescar, cozer alimentos, tanto
quanto fiar e tecer, pintar, dançar e cantar são atividades técnico-religiosas.
As futuras sete artes (as belas-artes) nascem, pois, no interior
dos cultos e para servi-los. Serão necessários milhares de anos e profundas
transformações histórico-sociais para que, um dia, surjam como atividade
cultural autônoma, dotadas de valor e significação próprias.
O artista era mago – como o
médico e o astrólogo -, artesão – como o arquiteto, o pintor e o escultor -,
iniciado num ofício sagrado – como o músico e o dançarino. É na qualidade de
mago, artífice e detentor de um ofício que realizava sua arte. Esta, por ser
parte inseparável do culto e do ritual, não se efetuava segundo a liberdade criadora
do técnico-artesão, mas exigia a repetição das mesmas regras e normas para a
fabricação dos objetos e a realização dos gestos.
O artífice iniciava-se nos
segredos das artes ou técnicas recebendo uma educação especial, tornando-se um iniciado em mistérios. Aprendia a
conhecer a matéria prima preestabelecida para o exercício de sua arte, a usar
utensílios e instrumentos preestabelecidos para sua ação, a realizar gestos,
utilizar cores, manipular ervas segundo um receituário fixo e secreto,
conhecido apenas pelos iniciados. O artista era oficiante de cultos e
fabricador dos objetos e gestos dos cultos. Seu trabalho nascia de um dom dos deuses (que deram aos humanos o
conhecimento do fogo, dos metais, das sementes, dos animais, das águas e dos
ventos, etc.) e era um dom para os
deuses.
A dimensão religiosa das artes
deu aos objetos artísticos ou às obras de arte uma qualidade que foi estudada
pelo filósofo alemão Walter Benjamin: a aura.
Que é a aura?
A aura é a absoluta
singularidade de um ser – natural ou artístico -, sua condição de exemplar
único que se oferece num aqui e agora irrepetível, sua qualidade de eternidade
e fugacidade simultâneas, seu pertencimento necessário ao contexto onde se
encontra e sua participação numa tradição que lhe dá sentido. É, no caso da
obra de arte, sua autenticidade, o
vínculo interno entre unidade e durabilidade. Única, una, irrepetível,
duradoura e efêmera, aqui-agora e parte de uma tradição, autêntica: a obra de
arte aurática é aquela que torna distante o que está perto, porque transfigura
a realidade, dando-lhe a qualidade da transcendência.
No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter
Benjamin escreve:
Em suma, o que é a aura? É uma
figura singular, composta de elementos especiais e temporais: a aparição única
de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso,
numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que
projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse
galho.
Porque as artes tinham como
finalidade sacralizar e divinizar o mundo – tornando-o distante e transcendente
– e, ao mesmo tempo, presentificar os deuses aos homens – tornando o divino
próximo e imanente –, sua origem religiosa transmitiu às obras de arte a
qualidade aurática mesmo quando deixaram de ser parte da religião para se
tornarem autônomas e belas-artes. No mesmo ensaio, escreve Benjamin:
A unicidade da obra de arte é
idêntica à sua inserção no contexto da tradição. Sem dúvida, essa tradição é algo
muito vivo, extraordinariamente variável. Uma antiga estátua de Vênus, por
exemplo, estava inscrita numa certa tradição entre os gregos, que faziam dela
um objeto de culto, e em outra tradição na Idade Média, quando os doutores da
Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que era comum às duas tradições,
contudo, era a unicidade da obra ou, em outras palavras, sua aura.
A forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual.
Em outras palavras: o valor único da obra de arte “autêntica”, tem sempre um fundamento teológico, pois mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, mesmo nas formas mais profanas do culto do belo. Essas formas profanas do culto do belo, surgidas na Renascença e vigentes durante três séculos, deixaram manifesto esse fundamento.
A forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual.
Em outras palavras: o valor único da obra de arte “autêntica”, tem sempre um fundamento teológico, pois mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, mesmo nas formas mais profanas do culto do belo. Essas formas profanas do culto do belo, surgidas na Renascença e vigentes durante três séculos, deixaram manifesto esse fundamento.
Passando do divino ao belo, as
artes não perderam o que a religião lhes dera: a aura. Não por acaso, o artista
foi visto como gênio criador inspirado, indivíduo excepcional que cria uma obra
excepcional, isto é, manteve em sua figura o mistério do mágico antigo.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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