Os meios de comunicação
Dos meios de comunicação, sem
dúvida, o rádio e a televisão manifestam mais do que todos os outros esses
traços da indústria cultural.
Começam introduzindo duas
divisões: a dos públicos (as chamadas “classes” A, B, C e D) e a dos horários
(a programação se organiza em horários específicos que combinam a “classe”, a
ocupação – donas-de-casa, trabalhadores manuais, profissionais liberais,
executivos -, a idade – crianças, adolescentes, adultos – e o sexo).
Essa divisão é feita para
atender às exigências dos patrocinadores, que financiam os programas em vista
dos consumidores potenciais de seus produtos e, portanto, criam a especificação
do conteúdo e do horário de cada programa. Em outras palavras, o conteúdo, a
forma e o horário do programa já trazem em seu próprio interior a marca do
patrocinador.
Muitas vezes, o patrocinador
financia um programa que nada tem a ver, diretamente, com o conteúdo e a forma
veiculados. Ele o faz porque, nesse caso, não está vendendo um produto, mas a
imagem de sua empresa. É assim, por exemplo, que uma empresa de cosméticos
pode, em lugar de patrocinar um programa feminino, patrocinar concertos de
música clássica; uma revendedora de motocicletas, em lugar de patrocinar um
programa para adolescentes, pode patrocinar um programa sobre ecologia.
A figura do patrocinador
determina o conteúdo e a forma de outros programas, ainda que não patrocinados
por ele. Por exemplo, um banco de um governo estadual pode patrocinar um
programa de auditório, pois isto é conveniente para atrair clientes, mas pode,
indiretamente, influenciar o conteúdo veiculado pelos noticiários. Por quê?
Porque a quantidade de dinheiro
paga pelo banco à rádio ou à televisão para o programa de auditório é muito
elevada e interessa aos proprietários daquela rádio ou televisão. Se o
noticiário apresentar notícias desfavoráveis ao governo do Estado ao qual pertence
o banco, este pode suspender o patrocínio do programa de auditório. Para não
perder o cliente, a emissora de rádio ou de televisão não veicula notícias
desfavoráveis àquele governo e, pior, veicula apenas as que lhe são favoráveis.
Dessa maneira, o direito à informação desaparece e os ouvintes ou
telespectadores são desinformados ou ficam mal informados.
A desinformação, aliás, é o
principal resultado da maioria dos noticiários de rádio e televisão. Com
efeito, como são apresentadas as notícias? De modo geral, são apresentadas de
maneira a impedir que o ouvinte e o espectador possam localizá-la no espaço e
no tempo.
Falta de localização espacial: o
espaço real é o aparelho de rádio e a tela da televisão, que tem a
peculiaridade de retirar as diferenças e distâncias geográficas, de tal modo
que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina Grande
pareça igualmente próximo e igualmente distante.
Falta de localização temporal:
os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem
efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou presentes, sem
continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências; existem enquanto forem
objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos.
Paradoxalmente, rádio e
televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem de tal
maneira que o mundo real desaparece, restando apenas retalhos fragmentados de
uma realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo. Nada sabemos, depois de
termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo.
Também é interessante a inversão
entre realidade e ficção produzida pela mídia. Acabamos de mencionar o modo
como o noticiário nos apresenta um mundo irreal, sem História, sem causas nem
conseqüências, descontínuo e fragmentado. Em contrapartida, as novelas criam o
sentimento de realidade. Elas o fazem usando três procedimentos principais:
1. o tempo dos acontecimentos
novelísticos é lento para dar a ilusão de que, a cada capítulo, passou-se
apenas um dia de nossa vida, ou passaram-se algumas horas, tais como realmente
passariam se fôssemos nós a viver os acontecimentos narrados;
2. os personagens, seus hábitos,
sua linguagem, suas casas, suas roupas, seus objetos são apresentados com o
máximo de realismo possível, de modo a impedir que tenhamos distância diante
deles (ao contrário do cinema e do teatro, que suscitam em nós o sentimento de
proximidade justamente porque nos fazem experimentar o da distância);
3. como conseqüência, a novela
nos aparece como relato do real, enquanto o noticiário nos aparece como irreal.
Basta ver, por exemplo, a reação de cidades inteiras quando uma personagem da
novela morre (as pessoas choram, querem ir ao enterro, ficam de luto) e a falta
de reação das pessoas diante de chacinas reais, apresentadas nos noticiários.
Vale a pena, também, mencionar
dois outros efeitos que a mídia produz em nossas mentes: a dispersão da atenção
e a infantilização.
Para atender aos interesses
econômicos dos patrocinadores, a mídia divide a programação em blocos que duram
de sete a dez minutos, cada bloco sendo interrompido pelos comerciais. Essa
divisão do tempo nos leva a concentrar a atenção durante os sete ou dez minutos
de programa e a desconcentrá-la durante as pausas para a publicidade.
Pouco a pouco, isso se torna um
hábito. Artistas de teatro afirmam que, durante um espetáculo, sentem o público
ficar desatento a cada sete minutos. Professores observam que seus alunos
perdem a atenção a cada dez minutos e só voltam a se concentrar após uma pausa
que dão a si mesmos, como se dividissem a aula em “programa” e “comercial”.
Ora, um dos resultados dessa
mudança mental transparece quando criança e jovem tentam ler um livro: não
conseguem ler mais do que sete a dez minutos de cada vez, não conseguem
suportar a ausência de imagens e ilustrações no texto, não suportam a ideia de
precisar ler “um livro inteiro”. A atenção e a concentração, a capacidade de
abstração intelectual e de exercício do pensamento foram destruídas. Como
esperar que possam desejar e interessar-se pelas obras de arte e de pensamento?
Por ser um ramo da indústria
cultural e, portanto, por ser fundamentalmente uma vendedora de Cultura que
precisa agradar o consumidor, a mídia infantiliza. Como isso acontece? Uma
pessoa (criança ou não) é infantil quando não consegue suportar a distância
temporal entre seu desejo e a satisfação dele. A criança é infantil justamente
porque para ela o intervalo entre o desejo e a satisfação é intolerável (por
isso a criança pequenina chora tanto).
Ora, o que faz a mídia? Promete
e oferece gratificação instantânea. Como o consegue? Criando em nós os desejos
e oferecendo produtos (publicidade e programação) para satisfazê-los. O ouvinte
que gira o dial do aparelho de rádio
continuamente e o telespectador que muda continuamente de canal o fazem porque
sabem que, em algum lugar, seu desejo será imediatamente satisfeito.
Além disso, como a programação
se dirige ao que já sabemos e já gostamos, e como toma a cultura sob a forma de
lazer e entretenimento, a mídia satisfaz imediatamente nossos desejos porque
não exige de nós atenção, pensamento, reflexão, crítica, perturbação de nossa
sensibilidade e de nossa fantasia. Em suma, não nos pede o que as obras de arte
e de pensamento nos pedem: trabalho sensorial e mental para compreendê-las,
amá-las, criticá-las, superá-las. A Cultura nos satisfaz, se tivermos paciência
para compreendê-la e decifrá-la. Exige maturidade. A mídia nos satisfaz porque
nada nos pede, senão que permaneçamos sempre infantis.
Um último traço da indústria
cultural que merece nossa atenção é seu autoritarismo, sob a aparência de
democracia. Um dos melhores exemplos encontra-se nos programas de
aconselhamento. Um especialista – é sempre um especialista – nos ensina a
viver, um outro nos ensina a criar os filhos, outro nos ensina a fazer sexo, e
assim vão se sucedendo especialistas que nos ensinam a ter um corpo juvenil e
saudável, boas maneiras, jardinagem, meditação espiritual, enfim, não há um
único aspecto de nossa existência que deixe de ser ensinado por um especialista
competente.
Em princípio, seria absurdo e
injusto considerar tais ensinamentos como autoritários. Pelo contrário,
deveríamos considerá-los uma forma de democratizar e sociabilizar
conhecimentos. Onde se encontra o lado autoritário desse tipo de programação
(no rádio e na televisão) e de publicação (no caso de jornais, revistas e
livros)? No fato de que funcionam como intimidação
social.
De fato, como a mídia nos
infantiliza, diminui nossa atenção e capacidade de pensamento, inverte
realidade e ficção e promete, por meio da publicidade, colocar a felicidade
imediatamente ao alcance de nossas mãos, transforma-nos num público dócil e
passivo. Uma vez que nos tornamos dóceis e passivos, os programas de
aconselhamento, longe de divulgar informações (como parece ser a intenção
generosa dos especialistas) torna-se um processo de inculcação de valores, hábitos, comportamentos e idéias, pois não
estamos preparados para pensar, avaliar e julgar o que vemos, ouvimos e lemos.
Por isso, ficamos intimidados, isto é, passamos a considerar que nada sabemos,
que somos incompetentes para viver e agir se não seguirmos a autoridade
competente do especialista.
Dessa maneira, um conjunto de
programas e publicações que poderiam ter verdadeiro significado cultural
tornam-se o contrário da Cultura e de sua democratização, pois se dirigem a um
público transformado em massa inculta, desinformada e passiva.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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