Arte e sociedade
Se acompanharmos as
transformações sofridas pelas artes, passando da função religiosa à autonomia
da obra de arte como criação e expressão, veremos que as mudanças foram de dois
tipos.
De um lado, mudanças quanto ao fazer artístico, diferenciando-se em escolas de arte ou estilos artísticos – clássico, gótico, renascentista, barroco, rococó,
romântico, impressionista, realista, expressionista, abstrato, construtivista,
surrealista, etc. Essas mudanças concernem à concepção do objeto artístico, às
relações entre matéria e forma, às técnicas de elaboração dos materiais, à
relação com o público, ao lugar ocupado por uma arte no interior das demais e
servindo de padrão a elas, às descobertas de procedimentos e materiais novos,
etc.
De outro lado, porém, concernem
à determinação social da atividade artística, seja do ponto de vista da finalidade
social das obras - por exemplo, o culto religioso ou o mercado de arte -, do
lugar ocupado pelo artista – por exemplo, iniciado numa seita secreta,
financiado por um mecenas renascentista, profissional liberal ligado ao mercado
de arte, etc. -, das condições de recepção da obra de arte – a comunidade de
fiéis, a elite cultivada e economicamente poderosa, as classes populares, a
massa, etc.
A discussão sobre a relação
arte-sociedade levou a duas atitudes filosóficas opostas. A primeira afirma que
a arte só é arte se for pura, isto
é, se não estiver preocupada com as circunstâncias históricas, sociais,
econômicas e políticas. Trata-se da defesa da “arte pela arte”. A segunda
afirma que o valor da obra de arte decorre de seu compromisso crítico diante
das circunstâncias presentes. Trata-se da “arte engajada”, na qual o artista
toma posição diante de sua sociedade, lutando para transformá-la e melhorá-la,
e para conscientizar as pessoas sobre as injustiças e as opressões do presente.
As duas concepções são problemáticas.
A primeira porque imagina o artista e a obra de arte como desprovidos de raízes
no mundo e livres das influências da sociedade sobre eles – o que é impossível.
A segunda porque corre o risco de sacrificar o trabalho artístico em nome das
“mensagens” que a obra deve enviar à sociedade para mudá-la, dando ao artista o
papel de consciência crítica do povo oprimido.
A primeira concepção desemboca
no chamado formalismo (é a perfeição
da forma que conta e não o conteúdo da obra). A segunda, no conteudismo (é a “mensagem” que conta,
mesmo que a forma da obra seja precária, descuidada, repetitiva e sem força
inovadora).
Numa perspectiva diferente, na
qual se deixa de lado a querela do formalismo puro e do conteudismo engajado,
Walter Benjamin analisou o modo de relação entre arte e sociedade na sociedade
capitalista tecnológica contemporânea. Benjamin tomou como referencial a
destruição da aura pela reprodução técnica das obras de arte. No ensaio já
mencionado, escreve ele:
(…) é fácil identificar os fatores
sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ele deriva de
duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade
dos movimentos de massas. Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma
preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o
caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade.
Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a repetitividade. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único.
Assim se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância crescente da estatística. Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição.
Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a repetitividade. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único.
Assim se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância crescente da estatística. Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição.
Evidentemente, diz Benjamin, a
arte sempre foi reprodutível, bastando ver discípulos imitando os mestres. A
questão, portanto, não está no fato da reprodução e sim na nova modalidade de
reproduzir: a reprodução técnica, que permite a existência do objeto artístico
em série e, em certos casos, como na fotografia, no disco e no cinema, tornando
impossível distinguir original e cópia, isto é, desfazendo as próprias idéias
de original e cópia.
Prossegue o filósofo:
(…) a reprodução técnica da obra
de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na História
intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com
intensidade crescente. Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez
tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço
para a palavra escrita.
Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no início do século XIX.
Com a litografia, a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova. Esse procedimento muito mais preciso, que distingue a transcrição do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre, permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma de criações sempre novas.
Dessa forma, as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana. Graças à litografia elas começaram a situar-se no mesmo nível que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primórdios, quando foi ultrapassada pela fotografia.
Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração, que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral.
Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava virtualmente contido na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século XIX. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos.
Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no início do século XIX.
Com a litografia, a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova. Esse procedimento muito mais preciso, que distingue a transcrição do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre, permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma de criações sempre novas.
Dessa forma, as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana. Graças à litografia elas começaram a situar-se no mesmo nível que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primórdios, quando foi ultrapassada pela fotografia.
Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração, que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral.
Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava virtualmente contido na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século XIX. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos.
A destruição da aura está
prefigurada na própria essência da obra de arte como algo possível porque ela
possui dois valores: o de culto e o de exposição, e este último suscita a
reprodutibilidade quando as condições sócio-históricos a exigirem e a
possibilitarem. Benjamin diz ainda:
Seria possível reconstituir a
História da arte a partir do confronto de dois pólos, no interior da própria
obra de arte, e ver o conteúdo dessa História na variação do peso conferido
seja a um pólo, seja a outro. Os dois pólos são o valor de culto da obra e seu
valor de exposição. A reprodução artística começa com imagens a serviço da
magia. O que importa, nessas imagens, é que existem, e não que sejam vistas.
O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de artes: certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Média são invisíveis, do solo, para o observador.
À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que sejam expostas. A exponibilidade de um busto, que pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma estátua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa.
A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala, com os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica, que a mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na pré-História.
Com efeito, assim como na pré-História a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, e que talvez se revele mais tarde como secundária.
Uma coisa é certa: o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa questão. É certo, também, que o alcance histórico dessa refuncionalização da arte, especialmente visível no cinema, permite um confronto com a arte da pré-História, não só do ponto de vista metodológico, como material. Essa arte registrava certas imagens, a serviço da magia, com funções práticas: seja como execução de atividades mágicas, seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas, seja como objeto de contemplação, à qual se atribuíram efeitos mágicos.
Os temas eram o homem e seu meio, copiados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual. Essa sociedade é a antítese da nossa, cuja técnica é a mais emancipada que jamais existiu. Mas essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza, não menos elementar que a da sociedade primitiva, como provam as guerras e as crises econômicas.
Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica, em primeira instância, ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido.
O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de artes: certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Média são invisíveis, do solo, para o observador.
À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que sejam expostas. A exponibilidade de um busto, que pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma estátua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa.
A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala, com os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica, que a mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na pré-História.
Com efeito, assim como na pré-História a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, e que talvez se revele mais tarde como secundária.
Uma coisa é certa: o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa questão. É certo, também, que o alcance histórico dessa refuncionalização da arte, especialmente visível no cinema, permite um confronto com a arte da pré-História, não só do ponto de vista metodológico, como material. Essa arte registrava certas imagens, a serviço da magia, com funções práticas: seja como execução de atividades mágicas, seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas, seja como objeto de contemplação, à qual se atribuíram efeitos mágicos.
Os temas eram o homem e seu meio, copiados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual. Essa sociedade é a antítese da nossa, cuja técnica é a mais emancipada que jamais existiu. Mas essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza, não menos elementar que a da sociedade primitiva, como provam as guerras e as crises econômicas.
Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica, em primeira instância, ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido.
Ao escrever sobre a mudança das
artes, nos anos 30, Benjamin tinha presente uma realidade e uma esperança. A
realidade era o nazi-fascismo e a guerra; a esperança, a revolução socialista.
A primeira havia transformado a
política e a guerra em espetáculos artísticos: Benjamin fala na estetização da política e da guerra,
transformadas em obras de arte pela propaganda e pelos grandes espetáculos de
massa, nos quais jogos, paradas militares, danças, ginástica, discursos
políticos e música formavam um conjunto ou uma totalidade visando a tocar fundo
nas emoções e paixões mais primitivas da sociedade. Nessa perspectiva, a
reprodutibilidade técnica das artes estava a serviço da propaganda de
mobilização totalitária das classes sociais em torno do “grande chefe”.
Ao contrário, a esperança na
revolução socialista como emancipação do gênero humano levava Benjamin a
considerar favoravelmente a perda da aura e a reprodutibilidade da obra de arte
como processo de democratização da Cultura, como direito de acesso às obras
artísticas por toda a sociedade e, especialmente, pelos trabalhadores. Em lugar
de a arte ser um privilégio de uma elite, seria um direito universal.
A esperança de Walter Benjamin
malogrou. Embora o nazi-fascismo houvesse terminado com o final da Segunda
Guerra Mundial, a massificação propagandística da arte não terminou com ele:
foi incorporada pelo stalinismo (que desfigurou e destruiu qualquer esperança
socialista) e pela indústria cultural dos países capitalistas. Surgia a cultura de massas.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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