"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Finalidades - funções da arte


Duas concepções predominam no correr da História das artes, concernentes às finalidades e às funções da atividade artística: a concepção pedagógica e a expressiva.
A concepção pedagógica encontra sua primeira formulação em Platão e Aristóteles. Na República, expondo a pedagogia para a criação da cidade perfeita, Platão exclui poetas, pintores e escultores, porque imitam as coisas sensíveis e oferecem uma imagem desrespeitosa dos deuses, tomados pelas paixões humanas; porém, coloca a dança e a música como disciplinas fundamentais na formação do corpo e da alma, isto é, do caráter das crianças e dos adolescentes. Como, para Platão, gramática, estratégia, aritmética, geometria e astronomia são artes, seu ensino é considerado indispensável na formação dos guerreiros e, acrescentadas da arte dialética, na formação dos filósofos.  

Aristóteles, na Arte poética, desenvolve longamente o papel pedagógico das artes, particularmente a tragédia, que, segundo o filósofo, tem a função de produzir a catarse, isto é, a purificação espiritual dos espectadores, comovidos e apavorados com a fúria, o horror e as conseqüências das paixões que movem as personagens trágicas. Essa função catártica é atribuída sobretudo à música.
Na Arte poética, Aristóteles escreve:

A música não deve ser praticada por um só tipo de benefício que dela pode derivar, mas por usos múltiplos, já que pode servir para a educação, para proporcionar a catarse e, em terceiro lugar, para o repouso da alma e a suspensão de suas fadigas.

Ecoando as palavras de Aristóteles, lemos em O mercador de Veneza, de Shakespeare:

Todo homem que em si não traga música
E a quem não toquem doces sons concordes,
É de traições, pilhagens, armadilhas.
Seu espírito vive em noite obscura,
Seus afetos são negros como o Érebo:
Não se confie em homem tal…

A concepção pedagógica da arte reaparece em Kant quando afirma que a função mais alta da arte é produzir o sentimento do sublime, isto é, a elevação e o arrebatamento de nosso espírito diante da beleza como algo terrível, espantoso, aproximação do infinito. Também Hegel insiste no papel educativo da arte. A pedagogia artística se efetua sob duas modalidades sucessivas: na primeira, a arte é o meio para a educação moral da sociedade (como Aristóteles havia mostrado a respeito da tragédia); na segunda, pela maneira como destrói a brutalidade da matéria, impondo-lhe a pureza da forma, educa a sociedade para passar do artístico à espiritualidade da religião, isto é, para passar da religião da exterioridade (os deuses e espíritos estão visíveis na Natureza) à religião da interioridade (o Absoluto é a razão e a verdade).
Por estabelecer uma relação intrínseca entre arte e sociedade, o pensamento estético de esquerda também atribui finalidade pedagógica às artes, dando-lhe a tarefa de crítica social e política, interpretação do presente e imaginação da sociedade futura. A arte deve ser engajada ou comprometida, isto é, estar a serviço da emancipação do gênero humano, oferecendo-se como instrumento do esforço de libertação.
Essa posição foi defendida pelo teatro de Brecht e, no Brasil, pelo de Augusto Boal; pela poesia de Maiakovski e Pablo Neruda, e, no Brasil, pela de Ferreira Gullar e José Paulo Paes; pelo romance de Sartre e, no Brasil, pelo de Graciliano Ramos; pelo cinema de Eisenstein e Chaplin, e, no Brasil, pelo Cinema Novo; pela pintura de Picasso e, no Brasil, pela de Portinari; na música, a música popular dos anos 60 e 70 foi de protesto político, com Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, entre outros.
Numa outra perspectiva, a arte é concebida como expressão, transformando num fim aquilo que para as outras atividades humanas é um meio. É assim que se diz que a arte faz ver a visão, faz falar a linguagem, faz ouvir a audição, faz sentir as mãos e o corpo, faz emergir o natural da Natureza, o cultural da Cultura. Aqui, a arte é revelação e manifestação da essência da realidade, amortecida e esquecida em nossa existência cotidiana, reduzida a conceitos nas ciências e na Filosofia, transformada em instrumento na técnica e na economia. Foi com essa concepção que abrimos este capítulo.
Como expressão, as artes transfiguram a realidade para que tenhamos acesso verdadeiro a ela. Desequilibra o instituído e o estabelecido, descentra formas e palavras, retirando-as do contexto costumeiro para fazer-nos conhecê-las numa outra dimensão, instituinte ou criadora. A arte inventa um mundo de cores, formas, volumes, massas, sons, gestos, texturas, ritmos, palavras, para nos dar a conhecer nosso próprio mundo. Por ser expressiva, é alegórica e simbólica.
A palavra alegoria vem do grego, significando: falar de outra coisa ou falar de uma coisa por meio de outra. Essa outra coisa é o símbolo. Assim, a balança e a estátua de olhos vendados são símbolos da justiça, a pomba, do Espírito Santo, a bandeira vermelha, da revolução. O símbolo, em grego, é o que une, junta, sintetiza numa unidade os diferentes, dando-lhes um sentido único e novo que não possuíam quando separados. A obra de arte é essa unidade simbólica e alegórica que nos abre o acesso ao verdadeiro, ao sublime, ao terrível, ao belo, à dor e ao prazer. Um quadro como a Guernica, de Picasso, é uma síntese poderosa de todas essas dimensões da expressão.
A arte como expressão não é apenas alegoria e símbolo. É algo mais profundo, pois procura exprimir o mundo através do artista. Ao fazê-lo, leva-nos a descobrir o sentido da Cultura e da História.
Tomemos a literatura por exemplo, embora se pudesse tomar qualquer uma das artes para expor o significado da atividade expressiva.
Quando um poeta ou um romancista escrevem, trabalham à maneira do tecelão. Este trabalha com fios e pelo avesso, mas produz, do outro lado, uma tapeçaria, isto é, desenho, cor, forma e figura. O escritor trabalha apenas com palavras, com a materialidade de sinais gráficos, mas o livro (poema ou romance, conto ou novela) é imaterial: é puro sentido, pura significação, a tal ponto que, quando acabamos de lê-lo, temos o sentimento de que houve uma comunicação entre nosso espírito e o do escritor, sem palavras.
Assim, a primeira revelação que a literatura nos traz é a do mundo da linguagem como materialidade sonora e gráfica que é e faz sentido, e este é imaterial, mas não pode existir sem a materialidade das palavras. Do mesmo modo, um quadro não é senão tinta, traço, cor, contornos e, no entanto, quando o vemos não olhamos essa materialidade e sim o mundo de significações ali expresso e que não poderia exprimir-se sem aquela materialidade que o tornou possível.
O escritor exprime algo novo (como vimos na abertura deste capítulo) porque descentra, desequilibra, torce e deforma o sentido das palavras, dando-lhes um outro, inteiramente novo. Com isso, uma segunda revelação é trazida pela literatura: a diferença entre linguagem instituída (aquela que usamos todos os dias e que constitui o repertório de sinais sonoros e gráficos com que indicamos e denotamos as coisas) e linguagem instituinte ou expressiva, isto é, a linguagem nova, que foi criada pela ação do escritor. O mesmo poderia ser mostrado em cada uma das artes, pois em todas elas o momento fundamental, o instante expressivo, é instituinte do novo.
Realizada a obra – o instituinte -, ela passa, graças aos leitores, espectadores, ouvintes, a fazer parte da cultura existente, tornando-se instituída. Dessa maneira, a obra de arte nos traz uma terceira revelação. Mostra que a Cultura é um movimento contínuo em que o instituído é descentrado, desequilibrado, deformado, modificado pelo novo, que, a seguir, graças aos destinatários da obra (o seu público), é depositado e sedimentado como parte do instituído, ficando disponível para todos como algo que é integrante de sua Cultura.
Esse duplo movimento – do instituído ao instituinte e deste para aquele – assinala que a obra de arte expressiva é interminável. De fato, cada artista, para exprimir-se, retoma as obras dos outros e as suas próprias para produzir uma obra nova que, por sua vez, será retomada por outros para novas expressões. Um artista supera e ultrapassa outros porque os retoma e os transforma, fazendo vir à expressão aquilo que outros prepararam para ele.
Cada obra de arte parte de um duplo ponto de partida: do desejo do artista de exprimir alguma coisa que ainda não sabe bem o que é e que somente a obra realizada lhe dirá; e do excesso de significações que as outras obras possuem e que elas próprias não chegaram a exprimir, excesso que só existe porque tais obras existem e o fizeram aparecer.
Assim, a obra de arte nos traz uma última revelação: mostra que a História é o movimento incessante no qual o presente (o artista trabalhando) retoma o passado (o trabalho dos outros) e abre o futuro (a nova obra, instituinte).


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

0 Response to "Finalidades - funções da arte"