Indústria cultural e cultura de massa
A modernidade terminou um
processo que a Filosofia começara desde a Grécia: o desencantamento do mundo,
isto é, a passagem do mito à razão, da magia à ciência e à lógica. Esse
processo liberou as artes da função e finalidade religiosas, dando-lhes
autonomia.
No entanto, a partir da segunda
revolução industrial no século XIX e prosseguindo no que se denomina agora
sociedade pós-industrial ou pós-moderna (iniciada nos anos 70 do século
passado), as artes foram submetidas a uma nova servidão: as regras do mercado
capitalista e a ideologia da indústria
cultural, baseada na ideia e na prática do consumo de “produtos culturais”
fabricados em série. As obras de arte são mercadorias, como tudo o que existe
no capitalismo.
Perdida a aura, a arte não se
democratizou, massificou-se para consumo rápido no mercado da moda e nos meios
de comunicação de massa, transformando-se em propaganda e publicidade, sinal de
status social, prestígio político e
controle cultural.
Sob os efeitos da massificação
da indústria e consumo culturais, as artes correm o risco de perder três de
suas principais características:
1. de expressivas, tornarem-se
reprodutivas e repetitivas;
2. de trabalho da criação,
tornarem-se eventos para consumo;
3. de experimentação do novo,
tornarem-se consagração do consagrado pela moda e pelo consumo.
A arte possui intrinsecamente
valor de exposição ou exponibilidade, isto é, existe para ser contemplada e
fruída. É essencialmente espetáculo, palavra que vem do latim e significa: dado
à visibilidade. No entanto, sob o controle econômico e ideológico das empresas
de produção artística, a arte se transformou em seu oposto: é um evento para
tornar invisível a realidade e o próprio trabalho criador das obras. É algo
para ser consumido e não para ser conhecido, fruído e superado por novas obras.
As obras de arte e de pensamento
poderiam democratizar-se com os novos meios de comunicação, pois todos
poderiam, em princípio, ter acesso a elas, conhecê-las, incorporá-las em suas
vidas, criticá-las, e os artistas e pensadores poderiam superá-las em outras,
novas.
A democratização da cultura tem
como precondição a idéia de que os bens culturais (no sentido restrito de obras
de arte e de pensamento e não no sentido antropológico amplo, que apresentamos
no estudo sobre a idéia de Cultura) são direito
de todos e não privilégio de alguns. Democracia cultural significa direito de
acesso e de fruição das obras culturais, direito à informação e à formação
culturais, direito à produção cultural.
Ora, a indústria cultural
acarreta o resultado oposto, ao massificar a Cultura. Por quê?
Em primeiro lugar, porque separa
os bens culturais pelo seu suposto valor de mercado: há obras “caras” e
“raras”, destinadas aos privilegiados que podem pagar por elas, formando uma
elite cultural; e há obras “baratas” e “comuns”, destinadas à massa. Assim, em
vez de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cultural, a
indústria cultural introduz a divisão social entre elite “culta” e massa
“inculta”. O que é a massa? É um agregado sem forma, sem rosto, sem identidade
e sem pleno direito à Cultura.
Em segundo lugar, porque cria a
ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais, cada um escolhendo
livremente o que deseja, como o consumidor num supermercado. No entanto, basta
darmos atenção aos horários dos programas de rádio e televisão ou ao que é
vendido nas bancas de jornais e revistas para vermos que, através dos preços, as
empresas de divulgação cultural já selecionaram de antemão o que cada grupo
social pode e deve ouvir, ver ou ler.
No caso dos jornais e revistas,
por exemplo, a qualidade do papel, a qualidade gráfica de letras e imagens, o
tipo de manchete e de matéria publicada definem o consumidor e determinam o
conteúdo daquilo a que terá acesso e tipo de informação que poderá receber. Se
compararmos, numa manhã, cinco ou seis jornais, perceberemos que o mesmo mundo
– este no qual todos vivemos – transforma-se em cinco ou seis mundos diferentes
ou mesmo opostos, pois um mesmo acontecimento recebe cinco ou seis tratamentos
diversos, em função do leitor que a empresa jornalística pretende atingir.
Em terceiro lugar, porque
inventa uma figura chamada “espectador médio”, “ouvinte médio” e “leitor
médio”, aos quais são atribuídas certas capacidades mentais “médias”, certos
conhecimentos “médios” e certos gostos “médios”, oferecendo-lhes produtos
culturais “médios”. Que significa isso?
A indústria cultural vende Cultura. Para vendê-la, deve
seduzir e agradar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo,
provocá-lo, fazê-lo pensar, fazê-lo ter informações novas que o perturbem, mas
deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já fez. A
“média” é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara
de coisa nova.
Em quarto lugar, porque define a
Cultura como lazer e entretenimento, diversão e distração, de modo que tudo o
que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade, da
imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica não tem interesse, não
“vende”. Massificar é, assim, banalizar a expressão artística e intelectual. Em
lugar de difundir e divulgar a Cultura, despertando interesse por ela, a indústria
cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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