Unidade do eterno e do novo
Alberto Caeiro, um dos heterônimos
do poeta Fernando Pessoa, leva-nos ao âmago da arte quando escreve:
O meu olhar é nítido como um
girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo.
A eterna novidade do mundo. Alberto Caeiro/Fernando Pessoa une duas
palavras, que, normalmente, estão separadas e mesmo em oposição – eterna e novidade -, pois o eterno é o que, fora do tempo, permanece sempre
idêntico a si mesmo, enquanto o novo é pura temporalidade, o tempo como
movimento e inquietação que se diferencia de si mesmo. No entanto, essa unidade
do eterno e do novo, aparentemente impossível, realiza-se pelos e para os
humanos. Chama-se arte.
Merleau-Ponty dizia que a arte é
advento – um vir a ser do que nunca
antes existiu -, como promessa infinita de acontecimentos
– as obras dos artistas. No ensaio A
linguagem indireta e as vozes do silêncio, ele escreve:
O primeiro desenho nas paredes
das cavernas fundava uma tradição porque recolhia uma outra: a da percepção. A
quase eternidade da arte confunde-se com a quase eternidade da existência
humana encarnada e por isso temos, no exercício de nosso corpo e de nossos
sentidos, com que compreender nossa gesticulação cultural, que nos insere no
tempo.
Que dizem os desenhos nas
paredes da caverna? Que o mundo é visível e para ser visto, e que o artista dá
a ver o mundo. Que mundo? Aquele eternamente novo, buscado incessantemente
pelos artistas. É assim que Monet pinta várias vezes a mesma catedral e, em cada tela, nasce uma nova catedral. Referindo-se a essa busca do eterno novo em Monet, o
filósofo Gaston Bachelard escreve, num ensaio denominado O pintor solicitado pelos elementos:
Um dia, Claude Monet quis que a
catedral fosse verdadeiramente aérea – aérea em sua substância, aérea no
próprio coração das pedras. E a catedral tomou da bruma azulada toda a matéria
azul que a própria bruma tomara do céu azul… Num outro dia, outro sonho
elementar se apodera da vontade de pintar. Claude Monet quer que a catedral se
torne uma esponja de luz, que absorva em todas as suas fileiras de pedras e em
todos os seus ornamentos o ocre de um sol poente. Então, nessa nova tela, a
catedral é um astro doce, um astro ruivo, um ser adormecido no calor do dia. As
torres brincavam mais alto no céu, quando recebiam o elemento aéreo. Ei-las
agora mais perto da Terra, mais terrestres, ardendo apenas um pouco, como fogo
guardado nas pedras de uma lareira.
Que procura o artista? Responde
Caeiro/Pessoa: “o pasmo essencial / que tem uma criança se, ao nascer, /
reparasse que nascera deveras”. O artista busca o mundo em estado nascente, tal
como seria não só ao ser visto por nós pela primeira vez, mas tal como teria
sido no momento originário da criação. Mas, simultaneamente, busca o mundo em
sua perenidade e permanência. É o que procura o pintor Cézanne, cujo trabalho é
assim comentado por Merleau-Ponty no ensaio A
dúvida de Cézanne:
Vivemos em meio aos objetos
construídos pelos homens, entre utensílios, casas, ruas, cidades e na maior
parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos
de aplicação… A pintura de Cézanne suspende estes hábitos e revela o fundo de
Natureza inumana sobre a qual se instala o homem… A paisagem aparece sem vento,
a água do lago sem movimento, os objetos transidos hesitando como na origem da
Terra. Um mundo sem familiaridade… Só um humano, contudo, é justamente capaz
desta visão que vai até as raízes, aquém da humanidade constituída… O artista é
aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que
participam sem perceber.
A obra de arte dá a ver, a
ouvir, a sentir, a pensar, a dizer. Nela e por ela, a realidade se revela como
se jamais a tivéssemos visto, ouvido, sentido, pensado ou dito. A experiência
de nascer todo dia para a “eterna novidade do mundo” pode ser feita por nós
quando lemos o poema de Jorge de Lima, Poema
do nadador:
A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
Aqui é fria, ali é morna,
A água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
A água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça,
A água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Se não, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
Aqui é fria, ali é morna,
A água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
A água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça,
A água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Se não, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.
Rigorosamente, não há nada nesse poema que desconheçamos.
Nenhuma das palavras empregadas pelo poeta nos é desconhecida. E, no entanto,
tudo aí é inteiramente novo. O poema diz o que, antes dele, jamais havia sido
dito e que, sem ele, nunca seria dito. O nada
é nadar, verbo, mas é também o nada,
pronome indefinido negativo, e o jogo único e inesperado desse dois sentidos
cria um terceiro, o nadador que é um nadador,
que nada no nada e por isso é um nada-dor.
O poeta transfigura a linguagem para fazê-la dizer algo, mas esse algo não
existe antes, aquém, depois, além do poema, pois é o próprio poema.
Um livro, diz Merleau-Ponty, é
“uma máquina infernal de produzir significações”. Começamos a lê-lo
preguiçosamente, meio distraídos. De repente, algumas palavras nos despertam,
como que nos queimam, o livro já não nos deixa indiferentes, passamos realmente
a lê-lo. Que se passa? A passagem da linguagem falada – aquela que possuíamos
em comum com o escritor – à linguagem falante – uma certa operação com os
signos e a significação, uma certa torção nas palavras, um ligeiro descentramento
do sentido instituído e a explosão de um sentido novo que “nos pega”.
A literatura, como a pintura, a
música, a escultura e qualquer das artes, é a passagem do instituído ao instituinte,
transfiguração do existente numa outra realidade, que o faz renascer sob a
forma de uma obra.
O que é ler? A leitura “é um
afrontamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de minha palavra e a do
autor”, a descoberta do poder da linguagem instituinte, “que aparece quando a
linguagem instituída é privada de seu equilíbrio costumeiro, ordenando-se
novamente para ensinar ao leitor o que este não sabia pensar ou dizer”.
Que é escrever? Para o poeta e o
romancista, diz Sartre, é distanciar-se da linguagem-instrumento e entrar na atitude poética, tratando as palavras
como entes reais e não como meros signos ou sinais estabelecidos. Apanham a
linguagem em estado selvagem (como o
pintor apanha a natureza inumana), como se as palavras fossem seres como a
Terra, a relva, a montanha ou a água. O prosador faz algo diverso do poeta:
quer que as palavras, além de por si e em si significarem alguma coisa,
designem o mundo, ainda que para isso o escritor tenha que inventar novamente o
mundo por meio das palavras. O prosador, escreve Sartre, “é aquele que escolheu
um modo de ação que se poderia chamar de ação por desvendamento”.
O que há de espantoso nas artes
é que elas realizam o desvendamento do mundo recriando o mundo noutra dimensão
e de tal maneira que a realidade não está aquém
e nem na obra, mas é a própria obra de arte.
Talvez a melhor comprovação
disso seja a música. Feita de sons, será destruída se tentarmos ouvir cada um
deles ou reproduzi-los como no toque de um corpo de cristal ou de metal. A
música, pela harmonia, pela proporção, pela combinação de sons, pelo ritmo e
pela percussão, cria um mundo sonoro que só existe por ela, nela e que é ela própria. Recolhe a sonoridade do
mundo e de nossa percepção auditiva, mas reinventa o som e a audição como se
estes jamais houvessem existido, tornando o mundo eternamente novo.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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