Arte e técnica
A palavra arte vem do latim ars e
corresponde ao termo grego techne,
técnica, significando: o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana
submetida a regras. Em sentido lato, significa habilidade, destreza, agilidade.
Em sentido estrito, instrumento, ofício, ciência. Seu campo semântico se define
por oposição ao acaso, ao espontâneo e ao natural. Por isso, em seu sentido mais geral, arte é um conjunto de
regras para dirigir uma atividade humana qualquer.
Nessa perspectiva, falamos em
arte médica, arte política, arte bélica, retórica, lógica, poética, dietética.
Platão não a distinguia das ciências nem da Filosofia, uma vez que estas, como
a arte, são atividades humanas ordenadas e regradas. A distinção platônica era
feita entre dois tipos de artes ou técnicas: as judicativas, isto é, dedicadas
apenas ao conhecimento, e as dispositivas ou imperativas, voltadas para a
direção de uma atividade, com base no conhecimento de suas regras.
Aristóteles, porém, estabeleceu
duas distinções que perduraram por séculos na Cultura ocidental. Numa delas
distingue ciência-Filosofia de arte ou técnica: a primeira refere-se ao necessário, isto é, ao que não pode ser
diferente do que é, enquanto a segunda se refere ao contingente ou ao possível,
portanto, ao que pode ser diferente do que é. Outra distinção é feita no campo
do próprio possível, pela diferença entre ação
e fabricação, isto é, entre práxis e poiesis. A política e a ética são ciências da ação. As artes ou
técnicas são atividades de fabricação.
Plotino completa a distinção,
separando teoria e prática e distinguindo as técnicas ou artes cuja finalidade
é auxiliar a Natureza – como a medicina, a agricultura – daquelas cuja
finalidade é fabricar um objeto com os materiais oferecidos pela Natureza – o
artesanato. Distingue também um outro conjunto de artes e técnicas que não se
relacionam com a Natureza, mas apenas com o próprio homem, para torná-lo melhor
ou pior: música e retórica, por exemplo.
A classificação das técnicas ou
artes seguirá um padrão determinado pela sociedade antiga e, portanto, pela
estrutura social fundada na escravidão, isto é, uma sociedade que despreza o
trabalho manual. Uma obra, As núpcias de
Mercúrio e Filologia, escrita pelo historiador romano Varrão, oferece a
classificação que perdurará do século II d.C. ao século XV, dividindo as artes
em liberais (os dignas do homem livre) e servis ou mecânicas (próprias do
trabalhador manual).
São artes liberais: gramática,
retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música, compondo o
currículo escolar dos homens livres. São artes mecânicas todas as outras
atividades técnicas: medicina, arquitetura, agricultura, pintura, escultura,
olaria, tecelagem, etc. Essa classificação diferenciada será justificada por
santo Tomás de Aquino durante a Idade Média como diferença entre as artes que
dirigem o trabalho da razão e as que dirigem o trabalho das mãos. Ora, somente
a alma é livre e o corpo é para ela uma prisão, de sorte que as artes liberais
são superiores às artes mecânicas.
As palavras mecânica e máquina vêm do
grego e significam estratagema engenhoso para resolver uma dificuldade
corporal. Assim, a alavanca ou a polia são mecânicas ou máquinas. Qual é o
estratagema astucioso? Fazer com que alguém fraco realize uma tarefa acima de
suas forças, graças a um instrumento engenhoso. Uma alavanca permite deslocar
um peso que uma pessoa, sozinha, jamais deslocaria. A técnica pertence, assim,
ao campo dos instrumentos engenhosos e astutos para auxiliar o corpo a realizar
uma atividade penosa, dura, difícil.
A partir da Renascença, porém,
trava-se uma luta pela valorização das artes mecânicas, pois o humanismo
renascentista dignifica o corpo humano e essa dignidade se traduz na batalha pela dignidade das artes mecânicas
para convertê-las à condição de artes liberais. Além disso, à medida que o
capitalismo se desenvolve, o trabalho passa a ser considerado fonte e causa das
riquezas, sendo por isso valorizado. A valorização do trabalho acarreta a
valorização das técnicas e artes mecânicas.
A primeira dignidade obtida
pelas artes mecânicas foi sua elevação à condição de conhecimento, como as
artes liberais. A segunda dignidade foi alcançada no final do século XVII e a
partir do século XVIII, quando distinguiram-se as finalidades das várias artes
mecânicas, isto é, as que têm como fim o que é útil aos homens – medicina, agricultura, culinária, artesanato – e
aquelas cujo fim é o belo – pintura,
escultura, arquitetura, poesia, música, teatro, dança. Com a ideia de beleza
surgem as sete artes[i]
ou as belas-artes, modo pelo qual
nos acostumamos a entender a arte.
A distinção entre artes da
utilidade e artes da beleza acarretou uma separação entre técnica (o útil) e
arte (o belo), levando à imagem da arte como ação individual espontânea, vinda
da sensibilidade e da fantasia do artista como gênio criador. Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras
e receitas vindas da tradição ou da ciência, o artista é visto como dotado de inspiração, entendida como uma espécie
de iluminação interior e espiritual misteriosa, que leva o gênio a criar a
obra.
Além disso, como a obra de arte
é pensada a partir de sua finalidade – a criação do belo -, torna-se
inseparável da figura do público (espectador, ouvinte, leitor), que julga e
avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado a beleza. Surge,
assim, o conceito de juízo de gosto,
que será amplamente estudado por Kant.
Gênio criador e inspiração, do
lado do artista (fala-se nele como “animal incomparável”); beleza, do lado da
obra; e juízo de gosto, do lado do público, constituem os pilares sobre os
quais se erguerá, como veremos adiante, uma disciplina filosófica: a estética.
Todavia, desde o final do século
XIX e durante o século XX, modificou-se a relação entre arte e técnica.
Por um lado, como vimos ao
estudar as ciências, o estatuto da técnica modificou-se quando esta se tornou
tecnologia, portanto, uma forma de conhecimento e não simples ação fabricadora
de acordo com regras e receitas. Por outro lado, as artes passaram a ser
concebidas menos como criação genial misteriosa e mais como expressão criadora, isto é, como
transfiguração do visível, do sonoro, do movimento, da linguagem, dos gestos em
obras artísticas.
As artes tornam-se trabalho da expressão e mostram que,
desde que surgiram pela primeira vez, foram inseparáveis da ciência e da
técnica. Assim, por exemplo, a pintura e a arquitetura da Renascença são
incompreensíveis sem a matemática e a teoria da harmonia e das proporções; a pintura
impressionista, incompreensível sem a física e a óptica, isto é, sem a teoria
das cores, etc. A novidade está no fato de que, agora, as artes não ocultam
essas relações, os artistas se referem explicitamente a elas e buscam nas
ciências e nas técnicas respostas e soluções para problemas artísticos.
A arte não perde seu vínculo com
a ideia de beleza, mas a subordina a um outro valor, a verdade. A obra de arte
busca caminhos de acesso ao real e de expressão da verdade. Em outras palavras,
as artes não pretendem imitar a realidade, nem pretendem ser ilusões sobre a
realidade, mas exprimir por meios artísticos a própria realidade. O pintor
deseja revelar o que é o mundo visível; o músico, o que é o mundo sonoro; o
dançarino, o que é o mundo do movimento; o escritor, o que é o mundo da
linguagem; o escultor, o que é o mundo da matéria e da forma. Para fazê-lo,
recorrem às técnicas e aos instrumentos técnicos (como, aliás, sempre o
fizeram, apesar da imagem do gênio criador inspirado, que tira de dentro de si
a obra).
Três manifestações artísticas
contemporâneas podem ilustrar o modo como arte e técnica se encontram e se
comunicam: a fotografia, o cinema e o design.
Fotografia e cinema surgem,
inicialmente, como técnicas de reprodução da realidade. Pouco a pouco, porém,
tornam-se interpretações da
realidade e artes da expressão. O design,
por sua vez, introduz as artes (pintura, escultura, arquitetura) no desenho e
na produção de objetos técnicos (usados na indústria e nos laboratórios
científicos) e de utensílios cotidianos (máquinas domésticas, automóveis,
mobiliário, talheres, copos, pratos, xícaras, lápis, canetas, aviões, tecidos
para móveis e cortinas, etc.).
As fronteiras entre arte e
técnica tornam-se cada vez mais tênues: é preciso uma película tecnicamente
perfeita para a foto artística e para o cinema de arte; é preciso um material
tecnicamente perfeito para que um disco possa reproduzir um concerto; é preciso
equipamentos técnicos de alta qualidade e precisão para produzir fotos, filmes,
discos, vídeos, cenários e iluminação teatrais.
A técnica de fabricação dos
instrumentos musicais e a invenção de aparelhos eletrônicos para música; as
possibilidades técnicas de novas tintas e cores, graças aos materiais
sintéticos, modificando a pintura; as possibilidades técnicas de novos
materiais de construção, modificando a arquitetura; o surgimento de novos
materiais sintéticos, modificando a escultura, são alguns exemplos da relação
interna entre atividade artística e invenção técnico-tecnológica.
Em nossos dias, a distinção
entre arte erudita e arte popular passa pela presença ou ausência da tecnologia
de ponta nas artes. A arte popular é artesanal; a erudita, tecnológica.
No entanto, em nossa sociedade
industrial, ainda é possível distinguir as obras de arte e os objetos técnicos
produzidos a partir do design e com a
preocupação de serem belos. A diferença está em que a finalidade desses objetos
é funcional, isto é, os materiais e as formas estão subordinados à função que devem preencher (uma cadeira
deve ser confortável para sentar; uma caneta, adequada para escrever; um
automóvel, adequado para a locomoção; uma geladeira, adequada para a
conservação dos alimentos, etc.). Da obra de arte, porém, não se espera nem se
exige funcionalidade, havendo nela plena liberdade para lidar com formas e
materiais.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
21 de fevereiro de 2019 às 19:00
Tinha tudo o que eu precisava saber, obrigada ❤️