A existência precede a essência
Quando concebemos um Deus criador, esse Deus
identificamo-lo quase sempre com um artífice superior; e qualquer que seja a
doutrina que consideremos, trate-se duma doutrina como a de Descartes ou a de
Leibniz, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou
pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que
cria. Assim o conceito do homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito
de um corta-papel no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo
técnicas e uma concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel
segundo uma definição e uma técnica. Assim o homem individual realiza um certo
conceito que está na inteligência divina. No século XVIII, para o ateísmo dos
filósofos, suprime-se a noção de Deus, mas não a ideia de que a essência
precede a existência. Tal ideia encontramo-la nós um pouco em todo o lado:
encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo num Kant. O homem possui uma
natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos
os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um
conceito universal — o homem; para Kant resulta de tal universalidade que o
homem da selva, o homem primitivo, como o burguês, estão adstritos à mesma
definição e possuem as mesmas qualidades de base. Assim, pois, ainda aí, a
essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na
natureza. (...) O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente.
Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência
precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer
conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana.
Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa
que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois
se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é
porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si
próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que
seja. como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o
primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a
subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer
nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma
mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja,
que o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é
consciente de se projetar no futuro. (...) Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro
esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de
lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que
o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é
responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos
os homens.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo, Coleção. Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973. p. 11-12.
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