Os homens e os animais
(...) É uma coisa
bastante notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem
excluir mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar conjuntamente
diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus
pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal, por mais perfeito e
bem concebido que possa ser, que faça o mesmo. E isso não se dá porque lhes
faltem órgãos, pois verificamos que as pegas* e os papagaios podem proferir
palavras assim como nós, e, todavia, não podem falar como nós, isto é,
testemunhando que pensam o que dizem. Por outro lado, os homens que, tendo
nascido surdos e mudos, são desprovidos dos órgãos que servem aos demais para
falar, tanto ou mais que os animais, costumam inventar eles próprios alguns
símbolos pelos quais se fazem entender por quem, estando comumente com eles,
disponha de tempo para aprender a sua língua. E isso não demonstra apenas que
os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não a possuem
absolutamente. Vemos que é preciso muito pouco para saber falar; e já que se
nota desigualdade entre os animais de uma mesma espécie, assim como entre os
homens, e que uns são mais fáceis de serem adestrados do que outros, não é
crível que um macaco ou um papagaio, por mais perfeitos que fossem, em sua
espécie, não igualassem uma criança das mais estúpidas ou pelo menos que
tivesse cérebro perturbado, se a sua alma não fosse de uma natureza
inteiramente diferente da nossa.
DESCARTES,
René. Discurso do método. Brasília, Editora Universidade de Brasília; São
Paulo, Ática, 1989, p. 76.
* Pega: uma espécie de ave.
* Pega: uma espécie de ave.
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