"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Os homens e os animais


(...) É uma coisa bastante notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excluir mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar conjuntamente diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal, por mais perfeito e bem concebido que possa ser, que faça o mesmo. E isso não se dá porque lhes faltem órgãos, pois verificamos que as pegas* e os papagaios podem proferir palavras assim como nós, e, todavia, não podem falar como nós, isto é, testemunhando que pensam o que dizem. Por outro lado, os homens que, tendo nascido surdos e mudos, são desprovidos dos órgãos que servem aos demais para falar, tanto ou mais que os animais, costumam inventar eles próprios alguns símbolos pelos quais se fazem entender por quem, estando comumente com eles, disponha de tempo para aprender a sua língua. E isso não demonstra apenas que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não a possuem absolutamente. Vemos que é preciso muito pouco para saber falar; e já que se nota desigualdade entre os animais de uma mesma espécie, assim como entre os homens, e que uns são mais fáceis de serem adestrados do que outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, por mais perfeitos que fossem, em sua espécie, não igualassem uma criança das mais estúpidas ou pelo menos que tivesse cérebro perturbado, se a sua alma não fosse de uma natureza inteiramente diferente da nossa.


DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília, Editora Universidade de Brasília; São Paulo, Ática, 1989, p. 76.

* Pega: uma espécie de ave.

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