De repente, aparece a gente
(...) Se alguém tivesse
tido esta tarde o bom humor de sair pelas ruas da cidade vestido com elmo,
lança e cota de malha, o mais provável é que dormisse esta noite num manicômio
ou numa delegacia de polícia. Porque não é uso, não é costume. Em compensação,
se esse alguém faz o mesmo num dia de carnaval, é possível que lhe concedam o
primeiro prêmio de mascarado. Por quê? Porque é uso, porque é costume
mascarar-se nessas festas. De modo que uma ação tão humana, como é a de se
vestir, não a realizamos por própria inspiração, mas nos vestimos de uma maneira
e não de outra, simplesmente porque se usa. Ora, o usual, o costumeiro,
fazemo-lo porque se faz. Mas, quem faz o que se faz? Ora!... A gente. Muito
bem! E quem é a gente? Ora... Todos, ninguém determinado. Isso nos leva a
reparar que uma enorme porção de nossas vidas se compõe de coisas que fazemos,
não por gosto, nem inspiração, nem conta própria, mas simplesmente porque a
gente as faz e, como o Estado, antes, a gente, agora, nos força a ações
humanas que provêm dela e não de nós.
E mais ainda:
comportamo-nos em nossa vida orientando-nos, nos pensamentos que temos, sobre
o que as coisas são; mas se dermos um balanço dessas ideias ou opiniões, com as
quais e das quais vivemos, acharemos com surpresa que muitas delas — talvez a
maioria — não as pensamos nunca por nossa conta, com plena e responsável
evidência de sua verdade; ao contrário, pensamo-las porque as ouvimos e
dizemo-las porque se dizem. Eis aqui este estranho impessoal, o se, que agora
aparece instalado dentro de nós, formando parte de nós, pensando ele ideias que
nós simplesmente pronunciamos.
Muito bem. E então; quem
diz o que se diz? Sem dúvida, cada um de nós; mas dizemos "o que
dizemos" como o guarda nos impede o passo; dizemo-lo, não por conta
própria, mas por conta desse sujeito impossível de capturar, indeterminado e
irresponsável que é a gente, a sociedade, a coletividade. Na medida em que
penso e falo — não por própria e individual evidência, mas repetindo isso que
se diz e que se opina — minha vida deixa de ser minha, deixo de ser o
personagem individualíssimo que sou, e atuo por conta da sociedade: sou um
autômato social, estou socializado.
ORTEGA
Y GASSET. O homem e a gente. Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1960. p.
206-207.
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