"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

De repente, aparece a gente


(...) Se alguém tivesse tido esta tarde o bom humor de sair pelas ruas da cida­de vestido com elmo, lança e cota de malha, o mais provável é que dormisse esta noite num manicômio ou numa delegacia de polícia. Porque não é uso, não é costume. Em compensação, se esse alguém faz o mesmo num dia de carna­val, é possível que lhe concedam o primeiro prêmio de mascarado. Por quê? Porque é uso, porque é costume mascarar-se nessas festas. De modo que uma ação tão humana, como é a de se vestir, não a realizamos por própria inspira­ção, mas nos vestimos de uma maneira e não de outra, simplesmente porque se usa. Ora, o usual, o costumeiro, fazemo-lo porque se faz. Mas, quem faz o que se faz? Ora!... A gente. Muito bem! E quem é a gente? Ora... Todos, nin­guém determinado. Isso nos leva a reparar que uma enorme porção de nossas vidas se compõe de coisas que fazemos, não por gosto, nem inspiração, nem conta própria, mas simplesmente porque a gente as faz e, como o Estado, an­tes, a gente, agora, nos força a ações humanas que provêm dela e não de nós.
E mais ainda: comportamo-nos em nossa vida orientando-nos, nos pensamen­tos que temos, sobre o que as coisas são; mas se dermos um balanço dessas ideias ou opiniões, com as quais e das quais vivemos, acharemos com surpresa que muitas delas — talvez a maioria — não as pensamos nunca por nossa con­ta, com plena e responsável evidência de sua verdade; ao contrário, pensamo-las porque as ouvimos e dizemo-las porque se dizem. Eis aqui este estranho im­pessoal, o se, que agora aparece instalado dentro de nós, formando parte de nós, pensando ele ideias que nós simplesmente pronunciamos.
Muito bem. E então; quem diz o que se diz? Sem dúvida, cada um de nós; mas dizemos "o que dizemos" como o guarda nos impede o passo; dizemo-lo, não por conta própria, mas por conta desse sujeito impossível de capturar, in­determinado e irresponsável que é a gente, a sociedade, a coletividade. Na me­dida em que penso e falo — não por própria e individual evidência, mas repetin­do isso que se diz e que se opina — minha vida deixa de ser minha, deixo de ser o personagem individualíssimo que sou, e atuo por conta da sociedade: sou um autômato social, estou socializado.


ORTEGA Y GASSET. O homem e a gente. Rio de Janei­ro, Livro Ibero-Americano, 1960. p. 206-207.

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