"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Multiculturalismo e políticas de reconhecimento


Cada grupo social tende a adotar determinada postura frente ao outro, essa seria justamente sua forma de representação. A afirmação social de uma representação tem como base fundamental a ação e a comunicação. Ela encadeia pensamento e linguagem o que permite a compreensão do mundo e assimilação das relações que nele se estabelecem.
Para compreendermos quem somos em grupo, como coletividade, ou quem somos individualmente, como indivíduos, dependemos da interpretação e do reconhecimento que nos é dado pelos outros. “Ninguém pode edificar a sua própria identidade independentemente das identificações que os outros fazem dele” (Habermas).  

O reconhecimento pelos outros é uma necessidade humana, já que o ser humano é um ser que só existe através da vida social. De acordo com Taylor[1] (1994), “um indivíduo ou um grupo de pessoas podem sofrer um verdadeiro dano, uma autêntica deformação se a gente ou a sociedade que os rodeiam lhes mostram como reflexo, uma imagem limitada, degradante, depreciada sobre ele.”
Um falso reconhecimento é uma forma de opressão. A imagem que construímos muitas vezes sobre os portadores de deficiências, prostitutas, homossexuais, etc. é deprimente e humilhante e causa-lhes sofrimento e humilhação, ainda mais por que tais representações depreciativas são construídas quase sempre para a legitimação da exclusão social e política dos grupos discriminados.Segundo Taylor (1994), “a projeção sobre o outro de uma imagem inferior ou humilhante pode deformar e oprimir até o ponto em que essa imagem seja internalizada”.
“O preconceito seja ele do tipo que for, é um atestado de insegurança, de autoritarismo, de absolutismo intelectual, enquadrando automaticamente em categorias classificatórias e pejorativas tudo aquilo que represente diferença. No fundo, viver em democracia está na proporção direta do quanto somos pessoal e coletivamente capazes de superar os nossos medos. O estereótipo é simplesmente o "rótulo" com que costumamos classificar certos grupos de pessoas, e é muito mais comum do que possa parecer. É introduzido no seio da sociedade e se agrega a psique[2] das pessoas por meio de anedotas, frases feitas, contos populares etc, pois, desde a mais tenra idade, as pessoas são condicionadas a acreditar que certos grupos de pessoas estão ligados a determinados atributos ou características.” (Otávio B. Lopes)
As sociedades contemporâneas são heterogêneas, ou seja, compostas por diferentes grupos humanos, classes e identidades culturais em conflito. Vivemos em sociedades nas quais os diferentes estão constantemente em contato.
 O autor Stuart Hall [3](2003) identifica pelo menos seis concepções diferentes de multiculturalismo[4] na atualidade, e sendo assim devemos falar em multiculturalismos.
“Podemos definir multiculturalismo como uma série de ações institucionais desenvolvidas na sociedade civil (a população organizada em associações, sindicatos, centros comunitários etc.) e nos diversos níveis de poder da República, ações voltadas para a compreensão do problema das diferenças e para a elaboração de projetos capazes de fazer frente aos mecanismos que permitem a reprodução das desigualdades, por isso mesmo Hall identificou seis concepções diferentes. A palavra multiculturalismo é um termo típico do contexto do mundo globalizado e constitui um dos mecanismos para lutar contra toda forma de intolerância e em favor de políticas públicas capazes de garantir os direitos civis e básicos a todos” (Mortari, 2002).
Os multiculturalismos nos ensinam que reconhecer a diferença é reconhecer que existem indivíduos e grupos que são diferentes entre si, mas que possuem direitos correlatos, e que a convivência em uma sociedade democrática depende da aceitação da ideia de compormos uma totalidade social heterogênea na qual:
a) não poderá ocorrer a exclusão de nenhum elemento da totalidade;
b) os conflitos de interesse e de valores deverão ser negociados pacificamente;
c) a diferença deverá ser respeitada.
A política do reconhecimento e as várias concepções de multiculturalismo nos ensinam, enfim, que é necessário que seja admitida a diferença na relação com o outro, tolerar e conviver com a diversidade em harmonia, respeitando as diferenças.
O Brasil é um país plural e este é o caráter da sociedade e da cultura brasileira. Assim, quando se pensa uma cultura peculiar como a nossa, a existência de diversas formas culturais expressa realidades diferentes, ligadas à intensa diversidade interna do país. Essa diversidade de cultura interna da sociedade brasileira envolve modos diversos de viver que devem ser estudados sem etnocentrismos, o que auxiliará a compreensão das diversas culturas e o consequente respeito a elas, superando os preconceitos.
Fala-se sobre o respeito às “diferenças”, a diversidade e o direito de todos à cidadania, o que aparenta, de fato, que qualquer um pode apossar-se desse discurso, que não só é aprazível, humanitário, solidário como também muito fácil de casar com o discurso neoliberal da atual sociedade, na qual há um mercado para tudo, e, portanto, um espaço “para todos”.

Fonte: Texto “Sociologia – 2º Ano do Ensino Médio” da Profª Bianca Wild




[1] Filósofo e pensador político.
[2] Psique era o conceito grego para o self ("si-mesmo"), abrangendo as ideias modernas de alma, ego e mente.
[3] Teórico cultural.
[4] 1. Multiculturalismo conservador: os dominantes buscam assimilar as minorias diferentes às tradições e costumes da maioria;
2. Multiculturalismo liberal: os diferentes devem ser integrados como iguais na sociedade dominante. A cidadania deve ser universal e igualitária, mas no domínio privado os diferentes podem adotar suas práticas culturais específicas;
3. Multiculturalismo pluralista: os diferentes grupos devem viver separadamente, dentro de uma ordem política federativa;
4. Multiculturalismo comercial: a diferença entre os indivíduos e grupos deve ser resolvida nas relações de mercado e no consumo privado, sem que sejam questionadas as desigualdade de poder e riqueza;
5. Multiculturalismo corporativo (público ou privado): a diferença deve ser administrada, de modo a que os interesses culturais e econômicos das minorias subalternas não incomodem os interesses dos dominantes;
6. Multiculturalismo crítico: questiona a origem das diferenças, criticando a exclusão social, a exclusão política, as formas de privilégio e de hierarquia existentes nas sociedades contemporâneas. Apóia os movimentos de resistência e de rebelião dos dominados.

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