As concepções da verdade e a História
As várias concepções da verdade que foram expostas estão
articuladas com mudanças históricas, tanto no sentido de mudanças na estrutura
e organização das sociedades, como quanto no sentido de mudanças no interior da
própria Filosofia.
Assim, por exemplo, nas sociedades antigas, baseadas no
trabalho escravo, a ideia da verdade como utilidade e eficácia prática não
poderia aparecer, pois a verdade é considerada a forma superior do espírito
humano, portanto, desligada do trabalho e das técnicas, e tomada como um valor
autônomo do conhecimento enquanto pura contemplação da realidade, isto é, como theoria.
Nas sociedades nascidas com o capitalismo, em que o trabalho
escravo e servil é substituído pelo trabalho livre e em que é elaborada a ideia
de indivíduo como um átomo social, isto é, como um ser que pode ser conhecido e
pensado por si mesmo e sem os outros, a verdade tenderá a ser concebida como
dependendo exclusivamente das operações do sujeito do conhecimento ou da
consciência de si reflexiva autônoma.
Também nas sociedades capitalistas, regidas pelo princípio
do crescimento ou acumulação do capital por meio do crescimento das forças
produtivas (trabalho e técnicas) e por meio do aumento da capacidade industrial
para dominar e controlar as forças da Natureza e a sociedade, a verdade tenderá
a aparecer como utilidade e eficácia, ou seja, como algo que tenha uso prático
e verificável. Assim como o trabalho deve produzir lucro, também o conhecimento
deve produzir resultados úteis.
Numa sociedade altamente tecnológica, como a do século XX
ocidental europeu e norte-americano, em que as pesquisas científicas tendem a
criar nos laboratórios o próprio objeto do conhecimento, isto é, em que o
objeto do conhecimento é uma construção do pensamento científico ou um constructus
produzido pelas teorias e pelas experimentações, a verdade tende a ser
considerada a forma lógica e coerente assumida pela própria teoria, bem como a ser
considerada como o consenso teórico estabelecido entre os membros das
comunidades de pesquisadores.
A verdade, portanto, como a razão, está na História e é
histórica.
Também as transformações internas à própria Filosofia
modificam a concepção da verdade. A teoria da verdade como correspondência
entre coisa e ideia, ou fato e ideia, liga-se à concepção realista da razão e
do conhecimento, isto é, à prioridade do objeto do conhecimento, ou realidade,
sobre o sujeito do conhecimento. Ao contrário, a concepção da verdade como
coerência interna e lógica das ideias ou dos conceitos liga-se à concepção
idealista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do sujeito do
conhecimento ou do pensamento sobre o objeto a ser conhecido.
As concepções históricas e as transformações internas ao
conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias
nem casuais ou acidentais, mas possuem causas e motivos que as explicam, e que
a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a
exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa
realizar-se.
As verdades (os conteúdos conhecidos) mudam, a ideia da
verdade (a forma de conhecer) muda, mas não muda a busca do verdadeiro, isto é,
permanece a exigência de vencer o senso-comum, o dogmatismo, a atitude natural
e seus preconceitos. É a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro
que permanecem. A verdade se conserva, portanto, como o valor mais alto a que
aspira o pensamento.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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