Uma terceira concepção da verdade
Quando falamos sobre Filosofia contemporânea, fizemos
referência a um tipo de filosofia conhecida como filosofia analítica.
A filosofia analítica dedicou-se prioritariamente aos
estudos da linguagem e da lógica e por isso situou a verdade como um fato ou um
acontecimento lingüístico e lógico, isto é, como um fato da linguagem. A teoria
da verdade, nessa filosofia, passou por duas grandes etapas.
Na primeira, os filósofos consideravam que a linguagem
produz enunciados sobre as coisas – há os enunciados do senso-comum ou da vida
cotidiana e os enunciados lógicos formulados pelas ciências. A pretensão da
linguagem, nos dois casos, seria a de produzir enunciados em conformidade com a
própria realidade, de modo que a verdade seria tal conformidade ou
correspondência entre os enunciados e os fatos e coisas.
Essa conformidade ou correspondência seria inadequada e
imprecisa na linguagem natural ou comum (nossa linguagem cotidiana) e seria
adequada, rigorosa e precisa na linguagem lógica das ciências. Por isso, a
ciência foi definida como “linguagem bem feita” e concebida como descrição e
“pintura” do mundo.
No entanto, inúmeros problemas tornaram essa concepção
insustentável. Por exemplo, se eu disser “estrela da manhã” e “estrela da
tarde”, terei dois enunciados diferentes e duas pinturas diferentes do mundo.
Acontece, porém, que esses dois enunciados se referem ao mesmo objeto, o
planeta Vênus. Como posso ter dois enunciados diferentes para significar o
mesmo objeto ou a mesma coisa?
Um outro exemplo, conhecido com o nome de “paradoxo do
catálogo”, também pode ilustrar as dificuldades da teoria da verdade como
correspondência entre enunciado e coisa, em que a correspondência é uma
“pintura” da realidade feita pelas ideias.
Se eu disser que existe o catálogo de todos os catálogos,
onde devo colocar o “catálogo dos catálogos”? Isto é, o catálogo dos catálogos
é um catálogo catalogado por ele mesmo junto com os outros catálogos, ou é um
catálogo que não faz parte de nenhum catálogo? Se estiver catalogado, não pode
ser catálogo de todos os catálogos, pois será necessário um outro catálogo que
o contenha; mas se não estiver catalogado, não é o catálogo de todos os
catálogos, pois em tal catálogo está faltando ele próprio.
O que se percebeu nesse paradoxo é que a estrutura e o
funcionamento da linguagem não correspondem exatamente à estrutura e ao
funcionamento das coisas. Essa descoberta conduziu a filosofia analítica à ideia
da verdade como algo puramente lingüístico e lógico, isto é, a verdade é a
coerência interna de uma linguagem que oferece axiomas, postulados e regras
para os enunciados e que é verdadeira ou falsa conforme respeite ou desrespeite
as normas de seu próprio funcionamento.
Cada campo do conhecimento cria sua própria linguagem, seus
axiomas, seus postulados, suas regras de demonstração e de verificação de seus
resultados e é a coerência interna entre os procedimentos e os resultados com
os princípios que fundamentam um certo campo de conhecimento que define o
verdadeiro e o falso. Verdade e falsidade não estão nas coisas nem nas ideias,
mas são valores dos enunciados, segundo o critério da coerência lógica.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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