As exigências fundamentais da verdade
Se examinarmos as diferentes concepções da verdade,
notaremos que algumas exigências fundamentais são conservadas em todas elas e
constituem o campo da busca do verdadeiro:
1. compreender as causas da diferença entre o parecer e o
ser das coisas ou dos erros;
2. compreender as causas da existência e das formas de
existência dos seres;
3. compreender os princípios necessários e universais do
conhecimento racional;
4. compreender as causas e os princípios da transformação
dos próprios conhecimentos;
5. separar preconceitos e hábitos do senso comum e a
atitude crítica do conhecimento;
6. explicitar com todos os detalhes os procedimentos
empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização;
7. liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a
significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte;
8. comunicabilidade, isto é, os critérios, os princípios,
os procedimentos, os percursos realizados, os resultados obtidos devem poder
ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais. Como escreve o
filósofo Espinosa, o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicar-se a todos e
ser compartilhado por todos;
9. transmissibilidade, isto é, os critérios, princípios,
procedimentos, percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados
e discutidos em público. Como diz Kant, temos o direito ao uso público da
razão;
10. veracidade, isto é, o conhecimento não pode ser
ideologia, ou, em outras palavras, não pode ser máscara e véu para dissimular e
ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação entre
os homens. Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o
conhecimento, também exige que seus frutos propiciem a liberdade de todos e a
emancipação de todos;
11. a verdade deve ser objetiva, isto é, deve ser
compreendida e aceita universal e necessariamente, sem que isso signifique que
ela seja “neutra” ou “imparcial”, pois o sujeito do conhecimento está
vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido
pode resultar em mudanças que afetem a realidade natural, social e cultural.
Como disseram os filósofos Sartre e Merleau-Ponty, somos
“seres em situação” e a verdade está sempre situada nas condições objetivas em
que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a
situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações. Não
escolhemos o país, a data, a família e a classe social em que nascemos – isso é
nossa situação -, mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo nossa
situação e indagando se merece ou não ser mantida.
A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil
porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas
podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o
que dá sentido à existência humana. Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa
fragilidade-força do desejo do verdadeiro:
O homem é apenas um caniço, o mais fraco da Natureza: mas é
um caniço pensante. Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo:
um vapor, uma gota de água são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o
Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata,
porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele; mas disso
o Universo nada sabe. Toda nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a
partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não
saberíamos ocupar.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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