Cultura e dever
Rousseau e Kant procuraram
conciliar o dever e a ideia de uma natureza humana que precisa ser obrigada à
moral. No entanto, ao enfatizarem a questão da natureza (Natureza e natureza humana), tenderam a perder de vista o
problema da relação entre o dever e a Cultura, pois poderíamos repetir, agora,
a pergunta que fizemos antes: Se a ética exige um sujeito consciente e
autônomo, como explicar que a moral exija o cumprimento do dever, definido como
um conjunto de valores, normas, fins e leis estabelecidos pela Cultura? Não
estaríamos de volta ao problema da exterioridade entre o sujeito e o dever? A
resposta a essa questão foi trazida, no século XIX, por Hegel.
Hegel critica Rousseau e Kant
por dois motivos. Em primeiro lugar, por terem dado atenção à relação sujeito
humano-Natureza (a relação entre razão e paixões), esquecendo a relação sujeito
humano-Cultura e História. Em segundo lugar, por terem admitido a relação entre
a ética e a sociabilidade dos seres humanos, mas tratando-a a partir de laços
muito frágeis, isto é, como relações
pessoais diretas entre indivíduos isolados ou independentes, quando
deveriam tê-la tomado a partir dos laços fortes das relações sociais, fixadas pelas instituições sociais (família,
sociedade civil, Estado). As relações pessoais entre indivíduos são
determinadas e mediadas por suas relações sociais. São estas últimas que
determinam a vida ética ou moral dos indivíduos.
Somos, diz Hegel, seres
históricos e culturais. Isso significa que, além de nossa vontade individual
subjetiva (que Rousseau chamou de coração
e Kant de razão prática), existe uma
outra vontade, muito mais poderosa, que determina a nossa: a vontade objetiva, inscrita nas
instituições ou na Cultura.
A vontade objetiva – impessoal,
coletiva, social, pública – cria as instituições e a moralidade como sistema regulador da vida coletiva por meio de mores, isto é, dos costumes e dos
valores de uma sociedade, numa época determinada. A moralidade é uma totalidade
formada pelas instituições (família, religião, artes, técnicas, ciências,
relações de trabalho, organização política, etc.), que obedecem, todas, aos
mesmos valores e aos mesmos costumes, educando os indivíduos para
interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura.
A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade subjetiva
individual e a vontade objetiva cultural. Realiza-se plenamente quando
interiorizamos nossa Cultura, de tal maneira que praticamos espontânea e
livremente seus costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os discutirmos,
sem deles duvidarmos, porque são como nossa própria vontade os deseja. O que é,
então, o dever? O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a
totalidade ética ou moralidade.
Como conseqüência, o imperativo
categórico não poderá ser uma forma universal desprovida de conteúdo
determinado, como afirmara Kant, mas terá, em cada época, em cada sociedade e
para cada Cultura, conteúdos determinados, válidos apenas para aquela formação
histórica e cultural. Assim cada sociedade, em cada época de sua História,
define os valores positivos e negativos, os atos permitidos e os proibidos para
seus membros, o conteúdo dos deveres e do imperativo moral. Ser ético e livre
será, portanto, pôr-se de acordo com as regras morais de nossa sociedade,
interiorizando-as.
Hegel afirma que podemos
perceber ou reconhecer o momento em que uma sociedade e uma Cultura entram em
declínio, perdem força para conservar-se e abrem-se às crises internas que
anunciam seu término e sua passagem a uma outra formação sociocultural. Esse
momento é aquele no qual os membros daquela sociedade e daquela Cultura
contestam os valores vigentes, sentem-se oprimidos e esmagados por eles, agem
de modo a transgredi-los. É o momento no qual o antigo acordo entre as vontades
subjetivas e a vontade objetiva rompem-se inexoravelmente, anunciando um novo
período histórico.
Numa perspectiva algo semelhante
à hegeliana encontra-se, no século XX, o filósofo francês Henri Bergson. Como
Hegel, Bergson procura compreender a relação dever-Cultura ou dever-História e,
portanto, as mudanças nas formas e no conteúdo da moralidade. Distingue ele duas
morais: a moral fechada e a aberta.
A moral fechada é o acordo entre
os valores e os costumes de uma sociedade e os sentimentos e as ações dos
indivíduos que nela vivem. É a moral repetitiva, habitual, respeitada quase
automaticamente por nós. Em contrapartida, a moral aberta é uma criação de novos valores e de novas
condutas que rompem a moral fechada, instaurando uma ética nova. Os criadores
éticos são, para Bergson, indivíduos excepcionais – heróis, santos, profetas,
artistas -, que colocam suas vidas a serviço de um tempo novo, inaugurado por
eles, graças a ações exemplares, que contrariam a moral fechada vigente.
Hegel diria que a moral aberta
bergsoniana só pode acontecer quando a moralidade vigente está em crise,
prestes a terminar, porque um novo período histórico-cultural está para
começar. A moral fechada quando sentida como repressora e opressora, e a
totalidade ética, quando percebida como contrária à subjetividade individual,
indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados
como violência e não mais como realização ética.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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