"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Liberdade e possibilidade objetiva


O possível não é o provável. Este é o previsível, isto é, algo que podemos calcular e antever, porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos. O possível, porém, é aquilo criado pela nossa própria ação. É o que vem à existência graças ao nosso agir. No entanto, não surge como “árvore milagrosa” e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação. A liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las.
Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse campo é temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer.  

Deixado a si mesmo, o campo do presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos passivamente a ele – a torneira permanecerá seca ou vazará, inundando a casa, a luz permanecerá apagada ou haverá um curto-circuito, incendiando a casa, a porta permanecerá fechada ou será arrombada, deixando a casa ser invadida. A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado.
Nada melhor do que um outro poema de Carlos Drummond para expressar essa ideia. Trata-se de um poema no qual o poeta reconhece que seu coração não é mais vasto do que o mundo, como ele imaginara:

MUNDO GRANDE

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
Por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
Preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
As diferentes dores dos homens,
Sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
Num só peito de homem… sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
Tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
Tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
Como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
As sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
Países imaginários, fáceis de habitar,
Ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
Trouxeram a notícia
De que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
Entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
Entre a vida e o fogo,
Meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! Nós te criaremos.

Que nos diz o poeta?
Que não é na solidão de uma vontade individual (“mais vasto é meu coração”, como o poeta escrevera antes) que podemos enfrentar livremente o “mundo grande”, mas na companhia dos outros que nos trazem a notícia de que o mundo cresce todo dia, isto é, transforma-se incessantemente “entre fogo e amor”, entre lutas, guerras, conflitos e busca de paz, entendimento e justiça. Somos livres não contra o mundo, mas no mundo – “meu coração cresce” (meu poder de querer e de fazer aumenta) -, mudando-o na companhia dos outros, aprendendo “a linguagem com que os homens se comunicam”, isto é, suas dores, seus sofrimentos, suas batalhas e suas esperanças. Somente tendo contato com o mundo, conhecendo seus limites e suas aberturas para os possíveis é que nossa liberdade poderá exclamar: “Ó vida futura, nós te criaremos”.
É essa mesma concepção da liberdade como possibilidade objetiva inscrita no mundo que encontramos no filósofo Merleau-Ponty, quando escreve:

Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo. Sob o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta nem escolha absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência… A situação vem em socorro da decisão e, no intercâmbio entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a “parte que cabe à situação” e a “parte que cabe à liberdade”.

            Tortura-se um homem para fazê-lo falar. Se ele recusa dar nomes e endereços que lhe querem arrancar, não é por sua decisão solitária e sem apoios no mundo. É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda engajado numa luta comum; ou é porque, desde há meses ou anos, tem enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua vida; ou, enfim, é porque ele quer provar, ultrapassando-a, o que ele sempre pensou e disse sobre a liberdade.

            Tais motivações não anulam a liberdade, mas lhe dão ancoradouro no ser. Ele não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com seus companheiros, ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive, ou, enfim, a consciência orgulhosamente solitária que é, ainda, um modo de estar com os outros… Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos escolhe…

            Concretamente tomada, a liberdade é sempre o encontro de nosso interior com o exterior, degradando-se, sem nunca tornar-se nula, à medida que diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida. Há um campo de liberdade e uma “liberdade condicionada”, porque tenho possibilidades próximas e distantes…

            A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situações dadas e possibilidades abertas. Minha liberdade pode desviar minha vida do sentido espontâneo que teria, mas o faz deslizando sobre este sentido, esposando-o inicialmente para depois afastar-se dele, e não por uma criação absoluta…

            Sou uma estrutura psicológica e histórica. Recebi uma maneira de existir, um estilo de existência. Todas as minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura. No entanto, sou livre, não apesar disto ou aquém dessas motivações, mas por meio delas, são elas que me fazem comunicar com minha vida, com o mundo e com minha liberdade.


A liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por nossa ação. Essa força transformadora, que torna real o que era somente possível e que se achava apenas latente como possibilidade, é o que faz surgir uma obra de arte, uma obra de pensamento, uma ação heroica, um movimento anti-racista, uma luta contra a discriminação sexual ou de classe social, uma resistência à tirania e a vitória contra ela.
O possível não é pura contingência ou acaso. O necessário não é fatalidade bruta. O possível é o que se encontra aberto no coração do necessário e que nossa liberdade agarra para fazer-se liberdade. Nosso desejo e nossa vontade não são incondicionados, mas os condicionamentos não são obstáculos à liberdade e sim o meio pelo qual ela pode exercer-se.
Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais – justiça, igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade – e, no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O segundo momento é a busca das brechas pelas quais possa passar o possível, isto é, uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal.
Esse segundo momento indaga se um possível existe e se temos o poder para torná-lo real, isto é, se temos como passar da “pena de viver” e da “árvore milagrosa” a uma felicidade que, enfim, esteja onde nós estamos. O terceiro momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação. O último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível num real, uma possibilidade numa realidade.
Eis por que o poeta José Paulo Paes introduz o “mas o pior” em seu poema. De fato, a torneira está seca, mas o pior é não ter sede, isto é, não agir para que a água possa correr pela torneira. De fato, a luz está apagada, mas o pior é gostar do escuro, isto é, não agir para que a luz possa acender-se. De fato, a porta está trancada, mas o pior é saber que a chave está do lado de dentro e nada fazer para girá-la. O mundo já está constituído, escreve Merleau-Ponty – a torneira está seca, a luz apagada e a porta fechada. Porém, o mundo, prossegue o filósofo, não está completamente constituído, não está pronto e acabado, mas, como escreve Carlos Drummond, “o grande mundo está crescendo todo dia” pelo fogo e amor dos seres humanos e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

0 Response to "Liberdade e possibilidade objetiva"