Liberdade e possibilidade objetiva
O possível não é o provável.
Este é o previsível, isto é, algo que podemos calcular e antever, porque é uma
probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos. O possível, porém,
é aquilo criado pela nossa própria
ação. É o que vem à existência graças ao nosso agir. No entanto, não surge como
“árvore milagrosa” e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa
ação. A liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e
das ações que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las.
Nosso mundo, nossa vida e nosso
presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas
e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse
campo é temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro, cujos
vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como
possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir duas atitudes:
ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo em qualquer direção que
desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer.
Deixado a si mesmo, o campo do
presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos
passivamente a ele – a torneira permanecerá seca ou vazará, inundando a casa, a
luz permanecerá apagada ou haverá um curto-circuito, incendiando a casa, a
porta permanecerá fechada ou será arrombada, deixando a casa ser invadida. A
liberdade, porém, não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo
do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os
vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura
de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado.
Nada melhor do que um outro
poema de Carlos Drummond para expressar essa ideia. Trata-se de um poema no
qual o poeta reconhece que seu coração não é mais vasto do que o mundo, como
ele imaginara:
MUNDO GRANDE
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
Por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
Preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
As diferentes dores dos homens,
Sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
Num só peito de homem… sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
Tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
Tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
Como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
As sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
Países imaginários, fáceis de habitar,
Ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
Trouxeram a notícia
De que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
Entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
Entre a vida e o fogo,
Meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! Nós te criaremos.
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
Por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
Preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
As diferentes dores dos homens,
Sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
Num só peito de homem… sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
Tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
Tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
Como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
As sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
Países imaginários, fáceis de habitar,
Ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
Trouxeram a notícia
De que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
Entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
Entre a vida e o fogo,
Meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! Nós te criaremos.
Que nos diz o poeta?
Que não é na solidão de uma
vontade individual (“mais vasto é meu coração”, como o poeta escrevera antes)
que podemos enfrentar livremente o “mundo grande”, mas na companhia dos outros
que nos trazem a notícia de que o mundo cresce todo dia, isto é, transforma-se
incessantemente “entre fogo e amor”, entre lutas, guerras, conflitos e busca de
paz, entendimento e justiça. Somos livres não
contra o mundo, mas no mundo –
“meu coração cresce” (meu poder de querer e de fazer aumenta) -, mudando-o na
companhia dos outros, aprendendo “a linguagem com que os homens se comunicam”,
isto é, suas dores, seus sofrimentos, suas batalhas e suas esperanças. Somente
tendo contato com o mundo, conhecendo seus limites e suas aberturas para os
possíveis é que nossa liberdade poderá exclamar: “Ó vida futura, nós te
criaremos”.
É essa mesma concepção da
liberdade como possibilidade objetiva inscrita no mundo que encontramos no
filósofo Merleau-Ponty, quando escreve:
Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o
mundo. Sob o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados
por ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e
estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os dois
aspectos ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta nem escolha
absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência… A
situação vem em socorro da decisão e, no intercâmbio entre a situação e aquele
que a assume, é impossível delimitar a “parte que cabe à situação” e a “parte
que cabe à liberdade”.
Tortura-se um homem para
fazê-lo falar. Se ele recusa dar nomes e endereços que lhe querem arrancar, não
é por sua decisão solitária e sem apoios no mundo. É que ele se sente ainda com
seus companheiros e ainda engajado numa luta comum; ou é porque, desde há meses
ou anos, tem enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua
vida; ou, enfim, é porque ele quer provar, ultrapassando-a, o que ele sempre
pensou e disse sobre a liberdade.
Tais motivações não anulam a
liberdade, mas lhe dão ancoradouro no ser. Ele não é uma consciência nua que
resiste à dor, mas o prisioneiro com seus companheiros, ou com aqueles que ama
e sob cujo olhar ele vive, ou, enfim, a consciência orgulhosamente solitária
que é, ainda, um modo de estar com os outros… Escolhemos nosso mundo e nosso
mundo nos escolhe…
Concretamente tomada, a
liberdade é sempre o encontro de nosso interior com o exterior, degradando-se,
sem nunca tornar-se nula, à medida que diminui a tolerância dos dados corporais
e institucionais de nossa vida. Há um campo de liberdade e uma “liberdade
condicionada”, porque tenho possibilidades próximas e distantes…
A escolha de vida que fazemos
tem sempre lugar sobre a base de situações dadas e possibilidades abertas.
Minha liberdade pode desviar minha vida do sentido espontâneo que teria, mas o
faz deslizando sobre este sentido, esposando-o inicialmente para depois
afastar-se dele, e não por uma criação absoluta…
Sou uma estrutura psicológica
e histórica. Recebi uma maneira de existir, um estilo de existência. Todas as
minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura. No
entanto, sou livre, não apesar disto ou aquém dessas motivações, mas por meio
delas, são elas que me fazem comunicar com minha vida, com o mundo e com minha
liberdade.
A liberdade é a capacidade para
darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situação de
fato numa realidade nova, criada por nossa ação. Essa força transformadora, que
torna real o que era somente possível e que se achava apenas latente como
possibilidade, é o que faz surgir uma obra de arte, uma obra de pensamento, uma
ação heroica, um movimento anti-racista, uma luta contra a discriminação sexual
ou de classe social, uma resistência à tirania e a vitória contra ela.
O possível não é pura
contingência ou acaso. O necessário não é fatalidade bruta. O possível é o que
se encontra aberto no coração do necessário e que nossa liberdade agarra para
fazer-se liberdade. Nosso desejo e nossa vontade não são incondicionados, mas
os condicionamentos não são obstáculos à liberdade e sim o meio pelo qual ela
pode exercer-se.
Se nascemos numa sociedade que
nos ensina certos valores morais – justiça, igualdade, veracidade,
generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade – e, no entanto, impede a
concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedi-los,
o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro
momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O segundo
momento é a busca das brechas pelas quais possa passar o possível, isto é, uma
outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal.
Esse segundo momento indaga se
um possível existe e se temos o poder para torná-lo real, isto é, se temos como
passar da “pena de viver” e da “árvore milagrosa” a uma felicidade que, enfim,
esteja onde nós estamos. O terceiro momento é o da nossa decisão de agir e da
escolha dos meios para a ação. O último momento da liberdade é a realização da
ação para transformar um possível num real, uma possibilidade numa realidade.
Eis por que o poeta José Paulo
Paes introduz o “mas o pior” em seu poema. De fato, a torneira está seca, mas o
pior é não ter sede, isto é, não agir para que a água possa correr pela
torneira. De fato, a luz está apagada, mas o pior é gostar do escuro, isto é,
não agir para que a luz possa acender-se. De fato, a porta está trancada, mas o
pior é saber que a chave está do lado de dentro e nada fazer para girá-la. O
mundo já está constituído, escreve Merleau-Ponty – a torneira está seca, a luz
apagada e a porta fechada. Porém, o mundo, prossegue o filósofo, não está
completamente constituído, não está pronto e acabado, mas, como escreve Carlos
Drummond, “o grande mundo está crescendo todo dia” pelo fogo e amor dos seres
humanos e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
0 Response to "Liberdade e possibilidade objetiva"
Postar um comentário