Natureza humana e dever
O cristianismo introduz a ideia
do dever para resolver um problema ético, qual seja, oferecer um caminho seguro
para nossa vontade, que, sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o bem
e o mal. No entanto, essa ideia cria um problema novo. Se o sujeito moral é
aquele que encontra em sua consciência (vontade, razão, coração) as normas da
conduta virtuosa, submetendo-se apenas ao bem, jamais submetendo-se a poderes
externos à consciência, como falar em comportamento ético por dever? Este não seria o poder externo de uma vontade externa
(Deus), que nos domina e nos impõe suas leis, forçando-nos a agir em
conformidade com regras vindas de fora de nossa consciência?
Em outras palavras, se a ética
exige um sujeito autônomo, a ideia de dever não introduziria a heteronomia,
isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho
a nós?
Um dos filósofos que procuraram
resolver essa dificuldade foi Rousseau, no século XVIII. Para ele, a
consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são “a voz da Natureza” e
o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons, dotados de
generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma
imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa
bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade
privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e
destrutivos.
O dever simplesmente nos força a
recordar nossa natureza originária e, portanto, só em aparência é imposição
exterior. Obedecendo ao dever (à lei divina inscrita em nosso coração), estamos
obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e às nossas emoções e não à
nossa razão, pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa.
Uma outra resposta, também no
final do século XVIII, foi trazida por Kant. Opondo-se à “moral do coração” de
Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Não existe bondade
natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos,
agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais
matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para
nos tornarmos seres morais.
A exposição kantiana parte de
duas distinções:
1. a distinção entre razão pura
teórica ou especulativa e razão pura prática;
2. a distinção entre ação por
causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade.
Razão pura teórica e prática são
universais, isto é, as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares
– podem variar no tempo e no espaço os conteúdos
dos conhecimentos e das ações, mas as formas
da atividade racional de conhecimento e da ação são universais. Em outras
palavras, o sujeito, em ambas, é sujeito
transcendental, como vimos na teoria do conhecimento. A diferença entre
razão teórica e prática encontra-se em seus objetos. A razão teórica ou
especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós, um
sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito,
independentes de nossa intervenção; a razão prática não contempla uma
causalidade externa necessária, mas cria sua própria realidade, na qual se
exerce. Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e
finalidade/liberdade.
A Natureza é o reino da
necessidade, isto é, de acontecimentos regidos por seqüências necessárias de
causa e efeito – é o reino da física, da astronomia, da química, da psicologia.
Diferentemente do reino da Natureza, há o reino humano da práxis, no qual as
ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal, mas por
finalidade e liberdade.
A razão prática é a liberdade
como instauração de normas e fins éticos. Se a razão prática tem o poder para
criar normas e fins morais, tem também o poder para impô-los a si mesma. Essa
imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o
dever. Este, portanto, longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade
e à nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais
alta da humanidade em nós. Obedecê-lo é obedecer a si mesmo. Por dever, damos a
nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos.
Resta, porém, uma questão: se
somos racionais e livres, por que valores, fins e leis morais não são
espontâneos em nós, mas precisam assumir a forma do dever?
Responde Kant: porque não somos
seres morais apenas. Também somos seres naturais, submetidos à causalidade
necessária da Natureza. Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites,
impulsos, desejos e paixões. Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos
comportamentos são a parte da Natureza em nós, exercendo domínio sobre nós,
submetendo-se à causalidade natural inexorável. Quem se submete a eles não pode
possuir a autonomia ética.
A Natureza nos impele a agir por
interesse. Este é a forma natural do
egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o
que desejamos. Além disso, o interesse nos faz viver na ilusão de que somos
livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas
livremente por nós, quando, na verdade, são um impulso cego determinado pela
causalidade natural. Agir por interesse é agir determinado por motivações
físicas, psíquicas, vitais, à maneira dos animais.
Visto que apetites, impulsos,
desejos, tendências, comportamentos naturais costumam ser muito mais fortes do
que a razão, a razão prática e a verdadeira liberdade precisam dobrar nossa
parte natural e impor-nos nosso ser moral. Elas o fazem obrigando-nos a passar
das motivações do interesse para o dever. Para sermos livres, precisamos ser
obrigados pelo dever de sermos livres.
Assim, à pergunta que fizemos no
capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa
natureza espontaneamente passional, Kant responderá que, pelo contrário, a
violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em
confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos
apetites e impulsos. O dever revela nossa verdadeira natureza.
O dever, afirma Kant, não se
apresenta através de um conjunto de conteúdos fixos, que definiriam a essência
de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada
circunstância de nossas vidas. O dever não é um catálogo de virtudes nem uma
lista de “faça isto” e “não faça aquilo”. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral.
Essa forma não é indicativa, mas
imperativa. O imperativo não admite hipóteses (“se… então”) nem condições que o
fariam valer em certas situações e não valer em outras, mas vale
incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as
ações morais. Por isso, o dever é um imperativo
categórico. Ordena incondicionalmente. Não é uma motivação psicológica, mas
a lei moral interior.
O imperativo categórico
exprime-se numa fórmula geral: Age em
conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei
universal. Em outras palavras, o ato moral é aquele que se realiza como
acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma.
Essa fórmula permite a Kant
deduzir as três máximas morais que
exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por dever. São elas:
1. Age como se a máxima de tua
ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza;
2. Age de tal maneira que trates
a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim
e nunca como um meio;
3. Age como se a máxima de tua
ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.
A primeira máxima afirma a
universalidade da conduta ética, isto é, aquilo que todo e qualquer ser humano
racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável, válida para todos e
em todo tempo e lugar. A ação por dever é uma lei moral para o agente.
A segunda máxima afirma a
dignidade dos seres humanos como pessoas e, portanto, a exigência de que sejam
tratados como fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos
interesses.
A terceira máxima afirma que a
vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque
racionais e, portanto, dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma. A
terceira máxima exprime a diferença ou separação entre o reino natural das
causas e o reino humano dos fins.
O imperativo categórico não
enuncia o conteúdo particular de uma ação, mas a forma geral das ações morais.
As máximas deixam clara a interiorização do dever, pois este nasce da razão e
da vontade legisladora universal do agente moral. O acordo entre vontade e
dever é o que Kant designa como vontade
boa que quer o bem.
O motivo moral da vontade boa é agir por dever. O móvel moral
da vontade boa é o respeito pelo
dever, produzido em nós pela razão. Obediência à lei moral, respeito pelo dever
e pelos outros constituem a bondade da vontade ética.
O imperativo categórico não nos
diz para sermos honestos, oferecendo-nos a essência da honestidade; nem para
sermos justos, verazes, generosos ou corajosos a partir da definição da
essência da justiça, da verdade, da generosidade ou da coragem. Não nos diz
para praticarmos esta ou aquela ação determinada, mas nos diz para sermos
éticos cumprindo o dever (as três máximas morais). É este que determina por que
uma ação moral deverá ser sempre honesta, justa, veraz, generosa ou corajosa.
Ao agir, devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais,
isto é, com as máximas do dever.
Por que, por exemplo, mentir é
imoral? Porque o mentiroso transgride as três máximas morais. Ao mentir, não
respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade (consciência, racionalidade e
liberdade), pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma
informação verdadeira e, por meio do engano, usa a boa-fé do outro. Também não
respeita a segunda máxima, pois se a mentira pudesse universalizar-se, o gênero
humano deveria abdicar da razão e do conhecimento, da reflexão e da crítica, da
capacidade para deliberar e escolher, vivendo na mais completa ignorância, no
erro e na ilusão.
Por que um político corrupto é
imoral? Porque transgride as três máximas. Por que o homicídio é imoral? Porque
transgride as três máximas.
As respostas de Rousseau e Kant,
embora diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade, qual seja, explicar
por que o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e
compatíveis. A solução de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior,
desfazendo a impressão de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade
estranha à nossa.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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