Razão, desejo e vontade
A tradição filosófica que
examinamos até aqui constitui o racionalismo
ético, pois atribui à razão humana o lugar central na vida ética. Duas
correntes principais formam a tradição racionalista: aquela que identifica
razão com inteligência, ou intelecto – corrente intelectualista – e aquela que
considera que, na moral, a razão identifica-se com a vontade – corrente
voluntarista.
Para a concepção
intelectualista, a vida ética ou vida virtuosa depende do conhecimento, pois é
somente por ignorância que fazemos o mal e nos deixamos arrastar por impulsos e
paixões contrários à virtude e ao bem. O ser humano, sendo essencialmente
racional, deve fazer com que sua razão ou inteligência (o intelecto) conheça os
fins morais, os meios morais e a diferença entre bem e mal, de modo a conduzir
a vontade no momento da deliberação e da decisão. A vida ética depende do
desenvolvimento da inteligência ou razão, sem a qual a vontade não poderá
atuar.
Para a concepção voluntarista, a
vida ética ou moral depende essencialmente da nossa vontade, porque dela
depende nosso agir e porque ela pode querer ou não querer o que a inteligência
lhe ordena. Se a vontade for boa, seremos virtuosos, se for má, seremos
viciosos. A vontade boa orienta nossa inteligência no momento da escolha de uma
ação, enquanto a vontade má desvia nossa razão da boa escolha, no momento de
deliberar e de agir. A vida ética depende da qualidade de nossa vontade e da
disciplina para forçá-la rumo ao bem. O dever educa a vontade para que se torne
reta e boa.
Nas duas correntes, porém, há
concordância quanto à ideia de que, por natureza, somos seres passionais,
cheios de apetites, impulsos e desejos cegos, desenfreados e desmedidos,
cabendo à razão (seja como inteligência, no intelectualismo, seja como vontade,
no voluntarismo) estabelecer limites e controles para paixões e desejos.
Egoísmo, agressividade, avareza,
busca ilimitada de prazeres corporais, sexualidade sem freios, mentira,
hipocrisia, má-fé, desejo de posse (tanto de coisas como de pessoas), ambição
desmedida, crueldade, medo, covardia, preguiça, ódio, impulsos assassinos,
desprezo pela vida e pelos sentimentos alheios são algumas das muitas paixões
que nos tornam imorais e incapazes de relações decentes e dignas com os outros
e conosco mesmos. Quando cedemos a elas, somos viciosos e culpados. A ética
apresenta-se, assim, como trabalho da inteligência e/ou da vontade para dominar
e controlar essas paixões.
Uma paixão – amor, ódio, inveja,
ambição, orgulho, medo – coloca-nos à mercê de coisas e pessoas que desejamos
possuir ou destruir. O racionalismo ético define a tarefa da educação moral e
da conduta ética como poderio da razão para impedir-nos de perder a liberdade
sob os efeitos de paixões desmedidas e incontroláveis. Para tanto, a ética
racionalista distingue necessidade, desejo e vontade.
A necessidade diz respeito a
tudo quanto necessitamos para conservar nossa existência: alimentação, bebida,
habitação, agasalho no frio, proteção contra as intempéries, relações sexuais
para a procriação, descanso para desfazer o cansaço, etc.
Para os seres humanos,
satisfazer às necessidades é fonte de satisfação. O desejo parte da satisfação
de necessidades, mas acrescenta a elas o sentimento do prazer, dando às coisas,
às pessoas e às situações novas qualidades e sentidos. No desejo, nossa
imaginação busca o prazer e foge da dor pelo significado atribuído ao que é
desejado ou indesejado.
A maneira como imaginamos a
satisfação, o prazer, o contentamento que alguma coisa ou alguém nos dão transforma
esta coisa ou este alguém em objeto de desejo e o procuramos sempre, mesmo
quando não conseguimos possuí-lo ou alcançá-lo. O desejo é, pois, a busca da
fruição daquilo que é desejado, porque o objeto do desejo dá sentido à nossa
vida, determina nossos sentimentos e nossas ações. Se, como os animais, temos
necessidades, somente como humanos temos desejos. Por isso, muitos filósofos
afirmam que a essência dos seres humanos é desejar e que somos seres
desejantes: não apenas desejamos, mas sobretudo desejamos ser desejados por
outros.
A vontade difere do desejo por
possuir três características que este não possui:
1. o ato voluntário implica um
esforço para vencer obstáculos. Estes podem ser materiais (uma montanha surge
no meio do caminho), físicos (fadiga, dor) ou psíquicos (desgosto, fracasso,
frustração). A tenacidade e a perseverança, a resistência e a continuação do
esforço são marcas da vontade e por isso falamos em força de vontade;
2. o ato voluntário exige
discernimento e reflexão antes de agir, isto é, exige deliberação, avaliação e
tomada de decisão. A vontade pesa, compara, avalia, discute, julga antes da
ação;
3. a vontade refere-se ao
possível, isto é, ao que pode ser ou deixar de ser e que se torna real ou
acontece graças ao ato voluntário, que atua em vista de fins e da previsão das
conseqüências. Por isso, a vontade é inseparável da responsabilidade.
O desejo é paixão. A vontade,
decisão. O desejo nasce da imaginação. A vontade se articula à reflexão. O
desejo não suporta o tempo, ou seja, desejar é querer a satisfação imediata e o
prazer imediato. A vontade, ao contrário, realiza-se no tempo; o esforço e a
ponderação trabalham com a relação entre meios e fins e aceitam a demora da
satisfação. Mas é o desejo que oferece à
vontade os motivos interiores e os fins exteriores da ação. À vontade cabe
a educação moral do desejo. Na concepção intelectualista, a inteligência
orienta a vontade para que esta eduque o desejo. Na concepção voluntarista, a
vontade boa tem o poder de educar o desejo, enquanto a vontade má submete-se a
ele e pode, em muitos casos, pervertê-lo.
Consciência, desejo e vontade
formam o campo da vida ética: consciência e desejo referem-se às nossas intenções e motivações; a vontade, às nossas ações e finalidades. As
primeiras dizem respeito à qualidade da atitude interior ou dos sentimentos
internos ao sujeito moral; as últimas, à qualidade da atitude externa, das
condutas e dos comportamentos do sujeito moral.
Para a concepção racionalista, a
filosofia moral é o conhecimento das motivações e intenções (que movem
interiormente o sujeito moral) e dos meios e fins da ação moral capazes de
concretizar aquelas motivações e intenções. Convém observar que a posição de
Kant, embora racionalista, difere das demais porque considera irrelevantes as
motivações e intenções do sujeito, uma vez que a ética diz respeito à forma
universal do ato moral, como ato livre de uma vontade racional boa, que age por
dever segundo as leis universais que deu a si mesma. O imperativo categórico
exclui motivos e intenções (que são sempre particulares) porque estes o
transformariam em algo condicionado por eles e, portanto, o tornariam um
imperativo hipotético, destruindo-o como fundamento universal da ação ética por
dever.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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