"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Razão, desejo e vontade


A tradição filosófica que examinamos até aqui constitui o racionalismo ético, pois atribui à razão humana o lugar central na vida ética. Duas correntes principais formam a tradição racionalista: aquela que identifica razão com inteligência, ou intelecto – corrente intelectualista – e aquela que considera que, na moral, a razão identifica-se com a vontade – corrente voluntarista.
Para a concepção intelectualista, a vida ética ou vida virtuosa depende do conhecimento, pois é somente por ignorância que fazemos o mal e nos deixamos arrastar por impulsos e paixões contrários à virtude e ao bem. O ser humano, sendo essencialmente racional, deve fazer com que sua razão ou inteligência (o intelecto) conheça os fins morais, os meios morais e a diferença entre bem e mal, de modo a conduzir a vontade no momento da deliberação e da decisão. A vida ética depende do desenvolvimento da inteligência ou razão, sem a qual a vontade não poderá atuar.  

Para a concepção voluntarista, a vida ética ou moral depende essencialmente da nossa vontade, porque dela depende nosso agir e porque ela pode querer ou não querer o que a inteligência lhe ordena. Se a vontade for boa, seremos virtuosos, se for má, seremos viciosos. A vontade boa orienta nossa inteligência no momento da escolha de uma ação, enquanto a vontade má desvia nossa razão da boa escolha, no momento de deliberar e de agir. A vida ética depende da qualidade de nossa vontade e da disciplina para forçá-la rumo ao bem. O dever educa a vontade para que se torne reta e boa.
Nas duas correntes, porém, há concordância quanto à ideia de que, por natureza, somos seres passionais, cheios de apetites, impulsos e desejos cegos, desenfreados e desmedidos, cabendo à razão (seja como inteligência, no intelectualismo, seja como vontade, no voluntarismo) estabelecer limites e controles para paixões e desejos.
Egoísmo, agressividade, avareza, busca ilimitada de prazeres corporais, sexualidade sem freios, mentira, hipocrisia, má-fé, desejo de posse (tanto de coisas como de pessoas), ambição desmedida, crueldade, medo, covardia, preguiça, ódio, impulsos assassinos, desprezo pela vida e pelos sentimentos alheios são algumas das muitas paixões que nos tornam imorais e incapazes de relações decentes e dignas com os outros e conosco mesmos. Quando cedemos a elas, somos viciosos e culpados. A ética apresenta-se, assim, como trabalho da inteligência e/ou da vontade para dominar e controlar essas paixões.
Uma paixão – amor, ódio, inveja, ambição, orgulho, medo – coloca-nos à mercê de coisas e pessoas que desejamos possuir ou destruir. O racionalismo ético define a tarefa da educação moral e da conduta ética como poderio da razão para impedir-nos de perder a liberdade sob os efeitos de paixões desmedidas e incontroláveis. Para tanto, a ética racionalista distingue necessidade, desejo e vontade.
A necessidade diz respeito a tudo quanto necessitamos para conservar nossa existência: alimentação, bebida, habitação, agasalho no frio, proteção contra as intempéries, relações sexuais para a procriação, descanso para desfazer o cansaço, etc.
Para os seres humanos, satisfazer às necessidades é fonte de satisfação. O desejo parte da satisfação de necessidades, mas acrescenta a elas o sentimento do prazer, dando às coisas, às pessoas e às situações novas qualidades e sentidos. No desejo, nossa imaginação busca o prazer e foge da dor pelo significado atribuído ao que é desejado ou indesejado.
A maneira como imaginamos a satisfação, o prazer, o contentamento que alguma coisa ou alguém nos dão transforma esta coisa ou este alguém em objeto de desejo e o procuramos sempre, mesmo quando não conseguimos possuí-lo ou alcançá-lo. O desejo é, pois, a busca da fruição daquilo que é desejado, porque o objeto do desejo dá sentido à nossa vida, determina nossos sentimentos e nossas ações. Se, como os animais, temos necessidades, somente como humanos temos desejos. Por isso, muitos filósofos afirmam que a essência dos seres humanos é desejar e que somos seres desejantes: não apenas desejamos, mas sobretudo desejamos ser desejados por outros.
A vontade difere do desejo por possuir três características que este não possui:
1. o ato voluntário implica um esforço para vencer obstáculos. Estes podem ser materiais (uma montanha surge no meio do caminho), físicos (fadiga, dor) ou psíquicos (desgosto, fracasso, frustração). A tenacidade e a perseverança, a resistência e a continuação do esforço são marcas da vontade e por isso falamos em força de vontade;
2. o ato voluntário exige discernimento e reflexão antes de agir, isto é, exige deliberação, avaliação e tomada de decisão. A vontade pesa, compara, avalia, discute, julga antes da ação;
3. a vontade refere-se ao possível, isto é, ao que pode ser ou deixar de ser e que se torna real ou acontece graças ao ato voluntário, que atua em vista de fins e da previsão das conseqüências. Por isso, a vontade é inseparável da responsabilidade.
O desejo é paixão. A vontade, decisão. O desejo nasce da imaginação. A vontade se articula à reflexão. O desejo não suporta o tempo, ou seja, desejar é querer a satisfação imediata e o prazer imediato. A vontade, ao contrário, realiza-se no tempo; o esforço e a ponderação trabalham com a relação entre meios e fins e aceitam a demora da satisfação. Mas é o desejo que oferece à vontade os motivos interiores e os fins exteriores da ação. À vontade cabe a educação moral do desejo. Na concepção intelectualista, a inteligência orienta a vontade para que esta eduque o desejo. Na concepção voluntarista, a vontade boa tem o poder de educar o desejo, enquanto a vontade má submete-se a ele e pode, em muitos casos, pervertê-lo.
Consciência, desejo e vontade formam o campo da vida ética: consciência e desejo referem-se às nossas intenções e motivações; a vontade, às nossas ações e finalidades. As primeiras dizem respeito à qualidade da atitude interior ou dos sentimentos internos ao sujeito moral; as últimas, à qualidade da atitude externa, das condutas e dos comportamentos do sujeito moral.
Para a concepção racionalista, a filosofia moral é o conhecimento das motivações e intenções (que movem interiormente o sujeito moral) e dos meios e fins da ação moral capazes de concretizar aquelas motivações e intenções. Convém observar que a posição de Kant, embora racionalista, difere das demais porque considera irrelevantes as motivações e intenções do sujeito, uma vez que a ética diz respeito à forma universal do ato moral, como ato livre de uma vontade racional boa, que age por dever segundo as leis universais que deu a si mesma. O imperativo categórico exclui motivos e intenções (que são sempre particulares) porque estes o transformariam em algo condicionado por eles e, portanto, o tornariam um imperativo hipotético, destruindo-o como fundamento universal da ação ética por dever.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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