"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Ética das emoções e do desejo


O racionalismo ético não é a única concepção filosófica da moral. Uma outra concepção filosófica é conhecida como emotivismo ético.
Para o emotivismo ético, o fundamento da vida moral não é a razão, mas a emoção. Nossos sentimentos são causas das normas e dos valores éticos. Inspirando-se em Rousseau, alguns emotivistas afirmam a bondade natural de nossos sentimentos e nossas paixões, que são, por isso, a forma e o conteúdo da existência moral como relação intersubjetiva e interpessoal. Outros emotivistas salientam a utilidade dos sentimentos ou das emoções para nossa sobrevivência e para nossas relações com os outros, cabendo à ética orientar essa utilidade de modo a impedir a violência e garantir relações justas entre os seres humanos.
Há ainda uma outra concepção ética, francamente contrária à racionalista (e, por isso, muitas vezes chamada de irracionalista), que contesta à razão o poder e o direito de intervir sobre o desejo e as paixões, identificando a liberdade com a plena manifestação do desejante e do passional. Essa concepção encontra-se em Nietzsche e em vários filósofos contemporâneos.  

Embora com variantes, essa concepção filosófica pode ser resumida nos seguintes pontos principais, tendo como referência a obra nietzscheana A genealogia da moral:
● a moral racionalista foi erguida com finalidade repressora e não para garantir o exercício da liberdade;
● a moral racionalista transformou tudo o que é natural e espontâneo nos seres humanos em vício, falta, culpa, e impôs a eles, com os nomes de virtude e dever, tudo o que oprime a natureza humana;
● paixões, desejos e vontade referem-se à vida e à expansão de nossa força vital, portanto, não se referem, espontaneamente, ao bem e ao mal, pois estes são uma invenção da moral racionalista;
● a moral racionalista foi inventada pelos fracos para controlar e dominar os fortes, cujos desejos, paixões e vontade afirmam a vida, mesmo na crueldade e na agressividade. Por medo da força vital dos fortes, os fracos condenaram paixões e desejos, submeteram a vontade à razão, inventaram o dever e impuseram castigos para os transgressores;
● transgredir normas e regras estabelecidas é a verdadeira expressão da liberdade e somente os fortes são capazes dessa ousadia. Para disciplinar e dobrar a vontade dos fortes, a moral racionalista, inventada pelos fracos, transformou a transgressão em falta, culpa e castigo;
● a força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma, como força da imaginação criadora. Por isso, os fortes desconhecem angústia, medo, remorso, humildade, inveja. A moral dos fracos, porém, é atitude preconceituosa e covarde dos que temem a saúde e a vida, invejam os fortes e procuram, pela mortificação do corpo e pelo sacrifício do espírito, vingar-se da força vital;
● a moral dos fracos é produto do ressentimento, que odeia e teme a vida, envenenando-a com a culpa e o pecado, voltando contra si mesma o ódio à vida;
● a moral dos ressentidos, baseada no medo e no ódio à vida (às paixões, aos desejos, à vontade forte), inventa uma outra vida, futura, eterna, incorpórea, que será dada como recompensa aos que sacrificarem seus impulsos vitais e aceitarem os valores dos fracos;
● a sociedade, governada por fracos hipócritas, impõe aos fortes modelos éticos que os enfraqueçam e os tornem prisioneiros dóceis da hipocrisia da moral vigente;
● é preciso manter os fortes, dizendo-lhes que o bem é tudo o que fortalece o desejo da vida e o mal tudo o que é contrário a esse desejo.
Para esses filósofos, que podemos chamar de anti-racionalistas, a moral racionalista ou dos fracos e ressentidos que temem a vida, o corpo, o desejo e as paixões é a moral dos escravos, dos que renunciam à verdadeira liberdade ética. São exemplos dessa moral de escravos: a ética socrática, a moral kantiana, a moral judaico-cristã, a ética da utopia socialista, a ética democrática, em suma, toda moral que afirme que os humanos são iguais, seja por serem racionais (Sócrates, Kant), seja por serem irmãos (religião judaico-cristã), seja por possuírem os mesmos direitos (ética socialista e democrática).
Contra a concepção dos escravos, afirma-se a moral dos senhores ou a ética dos melhores, dos aristoi[i], a moral aristocrática, fundada nos instintos vitais, nos desejos e naquilo que Nietzsche chama de vontade de potência, cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas, baseadas na guerra, nos combates e nos jogos, nas disputas pela glória e pela fama, na busca da honra e da coragem.
Essa concepção da ética suscita duas observações.
Em primeiro lugar, lembremos que a ética nasce como trabalho de uma sociedade para delimitar e controlar a violência, isto é, o uso da força contra outrem. Vimos que a filosofia moral se ergue como reflexão contra a violência, em nome de um ser humano concebido como racional, desejante, voluntário e livre, que, sendo sujeito, não pode ser tratado como coisa. A violência era localizada tanto nas ações contra outrem – assassinato, tortura, suplício, escravidão, crueldade, mentira, etc. – como nas ações contra nós mesmos – passividade, covardia, ódio, medo, adulação, inveja, remorso, etc. A ética se propunha, assim, a instituir valores, meios e fins que nos libertassem dessa dupla violência.
Os críticos da moral racionalista, porém, afirmam que a própria ética, transformada em costumes, preconceitos cristalizados e sobretudo em confiança na capacidade apaziguadora da razão, tornou-se a forma perfeita da violência. Contra ela, os anti-racionalistas defendem o valor de uma violência nova e purificadora – a potência ou a força dos instintos -, considerada libertadora. O problema consiste em saber se tal violência pode ter um papel liberador e suscitar uma nova ética.
Em segundo lugar, é curioso observar que muitos dos chamados irracionalistas contemporâneos baseiam-se na psicanálise e na teoria freudiana da repressão do desejo (fundamentalmente, do desejo sexual). Propõem uma ética que libere o desejo da repressão a que a sociedade o submeteu, repressão causadora de psicoses, neuroses, angústias e desesperos. O aspecto curioso está no fato de que Freud considerava extremamente perigoso liberar o id, as pulsões e o desejo, porque a psicanálise havia descoberto uma ligação profunda entre o desejo de prazer e o desejo de morte, a violência incontrolável do desejo, se não for orientado e controlado pelos valores éticos propostos pela razão e por uma sociedade racional.
Essas duas observações não devem, porém, esconder os méritos e as dificuldades da proposta moral anti-racionalista. É o seu grande mérito desnudar a hipocrisia e a violência da moral vigente, trazer de volta o antigo ideal de felicidade que nossa sociedade destruiu por meio da repressão e dos preconceitos. Porém, a dificuldade, como acabamos de assinalar acima, está em saber se o que devemos criticar e abandonar é a razão ou a racionalidade repressora e violenta, inventada por nossa sociedade, que precisa ser destruída por uma nova sociedade e uma nova racionalidade.
Sob esse aspecto, é interessante observar que não só Freud e Nietzsche criticaram a violência escondida sob a moral vigente em nossa Cultura, mas a mesma crítica foi feita por Bergson (quando descreveu a moral fechada) e por Marx, quando criticou a ideologia burguesa.
Marx afirmava que os valores da moral vigente – liberdade, felicidade, racionalidade, respeito à subjetividade e à humanidade de cada um, etc. – eram hipócritas não em si mesmos (como julgava Nietzsche), mas porque eram irrealizáveis e impossíveis numa sociedade violenta como a nossa, baseada na exploração do trabalho, na desigualdade social e econômica, na exclusão de uma parte da sociedade dos direitos políticos e culturais. A moral burguesa, dizia Marx, pretende ser um racionalismo humanista, mas as condições materiais concretas em que vive a maioria da sociedade impedem a existência plena de um ser humano que realize os valores éticos. Para Marx, portanto, tratava-se de mudar a sociedade para que a ética pudesse concretizar-se.
Críticas semelhantes foram feitas por pensadores socialistas, anarquistas, utópicos, para os quais o problema não se encontrava na razão como poderio dos fracos ressentidos contra os fortes, mas no modo como a sociedade está organizada, pois nela o imperativo categórico kantiano, por exemplo, não pode ser respeitado, uma vez que a organização social coloca uma parte da sociedade como coisa, instrumento ou meio para a outra parte.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.



[i] Aristoi, do grego, os melhores. Essa palavra referia-se àqueles que realizavam de um modo excelente os valores gregos da coragem na guerra, da beleza física e do respeito aos deuses. São a elite ou a classe dominante.

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