Ética das emoções e do desejo
O racionalismo ético não é a
única concepção filosófica da moral. Uma outra concepção filosófica é conhecida
como emotivismo ético.
Para o emotivismo ético, o
fundamento da vida moral não é a razão, mas a emoção. Nossos sentimentos são
causas das normas e dos valores éticos. Inspirando-se em Rousseau, alguns
emotivistas afirmam a bondade natural de nossos sentimentos e nossas paixões,
que são, por isso, a forma e o conteúdo da existência moral como relação
intersubjetiva e interpessoal. Outros emotivistas salientam a utilidade dos
sentimentos ou das emoções para nossa sobrevivência e para nossas relações com
os outros, cabendo à ética orientar essa utilidade de modo a impedir a
violência e garantir relações justas entre os seres humanos.
Há ainda uma outra concepção
ética, francamente contrária à racionalista (e, por isso, muitas vezes chamada
de irracionalista), que contesta à
razão o poder e o direito de intervir sobre o desejo e as paixões, identificando
a liberdade com a plena manifestação do desejante e do passional. Essa
concepção encontra-se em Nietzsche e em vários filósofos contemporâneos.
Embora com variantes, essa
concepção filosófica pode ser resumida nos seguintes pontos principais, tendo
como referência a obra nietzscheana A
genealogia da moral:
● a moral racionalista foi erguida com finalidade repressora e não para
garantir o exercício da liberdade;
● a moral racionalista transformou tudo o que é natural e espontâneo nos
seres humanos em vício, falta, culpa, e impôs a eles, com os nomes de virtude e
dever, tudo o que oprime a natureza humana;
● paixões, desejos e vontade referem-se à vida e à expansão de nossa força
vital, portanto, não se referem, espontaneamente, ao bem e ao mal, pois estes
são uma invenção da moral racionalista;
● a moral racionalista foi inventada pelos fracos para controlar e dominar
os fortes, cujos desejos, paixões e vontade afirmam a vida, mesmo na crueldade
e na agressividade. Por medo da força vital dos fortes, os fracos condenaram
paixões e desejos, submeteram a vontade à razão, inventaram o dever e impuseram
castigos para os transgressores;
● transgredir normas e regras estabelecidas é a verdadeira expressão da
liberdade e somente os fortes são capazes dessa ousadia. Para disciplinar e
dobrar a vontade dos fortes, a moral racionalista, inventada pelos fracos,
transformou a transgressão em falta, culpa e castigo;
● a força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma, como força da
imaginação criadora. Por isso, os fortes desconhecem angústia, medo, remorso,
humildade, inveja. A moral dos fracos, porém, é atitude preconceituosa e
covarde dos que temem a saúde e a vida, invejam os fortes e procuram, pela
mortificação do corpo e pelo sacrifício do espírito, vingar-se da força vital;
● a moral dos fracos é produto do ressentimento, que odeia e teme a vida,
envenenando-a com a culpa e o pecado, voltando contra si mesma o ódio à vida;
● a moral dos ressentidos, baseada no medo e no ódio à vida (às paixões,
aos desejos, à vontade forte), inventa uma outra vida, futura, eterna,
incorpórea, que será dada como recompensa aos que sacrificarem seus impulsos
vitais e aceitarem os valores dos fracos;
● a sociedade, governada por fracos hipócritas, impõe aos fortes modelos
éticos que os enfraqueçam e os tornem prisioneiros dóceis da hipocrisia da
moral vigente;
● é preciso manter os fortes, dizendo-lhes que o bem é tudo o que fortalece
o desejo da vida e o mal tudo o que é contrário a esse desejo.
Para esses filósofos, que podemos chamar de anti-racionalistas, a moral
racionalista ou dos fracos e ressentidos que temem a vida, o corpo, o desejo e
as paixões é a moral dos escravos,
dos que renunciam à verdadeira liberdade ética. São exemplos dessa moral de
escravos: a ética socrática, a moral kantiana, a moral judaico-cristã, a ética
da utopia socialista, a ética democrática, em suma, toda moral que afirme que
os humanos são iguais, seja por serem racionais (Sócrates, Kant), seja por
serem irmãos (religião judaico-cristã), seja por possuírem os mesmos direitos
(ética socialista e democrática).
Contra a concepção dos escravos, afirma-se a moral dos senhores ou a ética dos melhores, dos aristoi[i], a moral
aristocrática, fundada nos instintos vitais, nos desejos e naquilo que
Nietzsche chama de vontade de potência,
cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas,
baseadas na guerra, nos combates e nos jogos, nas disputas pela glória e pela
fama, na busca da honra e da coragem.
Essa concepção da ética suscita duas observações.
Em primeiro lugar, lembremos que a ética nasce como trabalho de uma
sociedade para delimitar e controlar a violência, isto é, o uso da força contra
outrem. Vimos que a filosofia moral se ergue como reflexão contra a violência,
em nome de um ser humano concebido como racional, desejante, voluntário e
livre, que, sendo sujeito, não pode ser tratado como coisa. A violência era
localizada tanto nas ações contra outrem – assassinato, tortura, suplício,
escravidão, crueldade, mentira, etc. – como nas ações contra nós mesmos –
passividade, covardia, ódio, medo, adulação, inveja, remorso, etc. A ética se
propunha, assim, a instituir valores, meios e fins que nos libertassem dessa
dupla violência.
Os críticos da moral racionalista, porém, afirmam que a própria ética,
transformada em costumes, preconceitos cristalizados e sobretudo em confiança
na capacidade apaziguadora da razão, tornou-se a forma perfeita da violência.
Contra ela, os anti-racionalistas defendem o valor de uma violência nova e
purificadora – a potência ou a força dos instintos -, considerada libertadora.
O problema consiste em saber se tal violência pode ter um papel liberador e
suscitar uma nova ética.
Em segundo lugar, é curioso observar que muitos dos chamados
irracionalistas contemporâneos baseiam-se na psicanálise e na teoria freudiana
da repressão do desejo (fundamentalmente, do desejo sexual). Propõem uma ética
que libere o desejo da repressão a que a sociedade o submeteu, repressão
causadora de psicoses, neuroses, angústias e desesperos. O aspecto curioso está
no fato de que Freud considerava extremamente perigoso liberar o id, as pulsões
e o desejo, porque a psicanálise havia descoberto uma ligação profunda entre o
desejo de prazer e o desejo de morte, a violência incontrolável do desejo, se
não for orientado e controlado pelos valores éticos propostos pela razão e por
uma sociedade racional.
Essas duas observações não devem, porém, esconder os méritos e as
dificuldades da proposta moral anti-racionalista. É o seu grande mérito
desnudar a hipocrisia e a violência da moral vigente, trazer de volta o antigo
ideal de felicidade que nossa sociedade destruiu por meio da repressão e dos
preconceitos. Porém, a dificuldade, como acabamos de assinalar acima, está em
saber se o que devemos criticar e abandonar é a razão ou a racionalidade
repressora e violenta, inventada por nossa sociedade, que precisa ser destruída
por uma nova sociedade e uma nova racionalidade.
Sob esse aspecto, é interessante observar que não só Freud e Nietzsche
criticaram a violência escondida sob a moral vigente em nossa Cultura, mas a
mesma crítica foi feita por Bergson (quando descreveu a moral fechada) e por
Marx, quando criticou a ideologia burguesa.
Marx afirmava que os valores da moral vigente – liberdade, felicidade,
racionalidade, respeito à subjetividade e à humanidade de cada um, etc. – eram
hipócritas não em si mesmos (como julgava Nietzsche), mas porque eram
irrealizáveis e impossíveis numa sociedade violenta como a nossa, baseada na
exploração do trabalho, na desigualdade social e econômica, na exclusão de uma
parte da sociedade dos direitos políticos e culturais. A moral burguesa, dizia
Marx, pretende ser um racionalismo humanista, mas as condições materiais
concretas em que vive a maioria da sociedade impedem a existência plena de um
ser humano que realize os valores éticos. Para Marx, portanto, tratava-se de
mudar a sociedade para que a ética pudesse concretizar-se.
Críticas semelhantes foram feitas por pensadores socialistas, anarquistas,
utópicos, para os quais o problema não se encontrava na razão como poderio dos
fracos ressentidos contra os fortes, mas no modo como a sociedade está
organizada, pois nela o imperativo categórico kantiano, por exemplo, não pode
ser respeitado, uma vez que a organização social coloca uma parte da sociedade
como coisa, instrumento ou meio para a outra parte.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
[i]
Aristoi, do grego, os melhores. Essa
palavra referia-se àqueles que realizavam de um modo excelente os valores
gregos da coragem na guerra, da beleza física e do respeito aos deuses. São a elite ou a classe dominante.
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