Três grandes concepções filosóficas da liberdade
Na história das ideias
ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas.
A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o
destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte. Uma das Parcas ou
Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e
a última o cortava, simbolizando nossa morte. A contingência (ou o acaso) era
representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma
roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou
boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse
elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa
ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico Buarque:
“Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”.
As teorias éticas procuraram
sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o
campo da liberdade possível.
A primeira grande teoria
filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e, com variantes,
permanece através dos séculos, chegando até o século XX, quando foi retomada
por Sartre. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado
externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada
(contingência).
Diz Aristóteles que é livre
aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele
que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. A liberdade é
concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si
mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de
constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não
encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir.
Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os
fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém.
Assim, na concepção
aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas
possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário. Contrariamente ao
necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação de uma causa
externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira, no ato
voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação.
Sem dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou
pela inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou
incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
No entanto, como disseram os
filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange,
tanto assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência
ou razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os
conselhos da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade
estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.
Sartre levou essa concepção ao
ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional que o próprio
homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de
forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é uma
decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram
nem se resignaram.
Em outras palavras, conformar-se
ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar nem se conformar,
lutando contra as circunstâncias. Quando dizemos estar fatigados, a fadiga é
uma decisão nossa. Quando dizemos estar enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão
nossa. Quando dizemos não ter o que fazer, o abandono é uma decisão nossa.
Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa.
Por isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela
que define a humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa ideia que
encontramos no poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que
o “vasto mundo”. É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho,
quando nos diz que a felicidade “está sempre apenas onde a pomos” e “nunca a
pomos onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder
a felicidade.
A segunda concepção da liberdade
foi, inicialmente, desenvolvida por uma escola de Filosofia do período
helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa
e, no século XIX, com Hegel e Marx. Eles conservam a ideia aristotélica de que
a liberdade é a autodeterminação ou ser
causa de si. Conservam também a ideia de que é livre aquele que age sem ser
forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age movido
espontaneamente por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de Aristóteles
e de Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade
individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes.
O todo ou a totalidade pode ser
a Natureza – como para os estoicos e Espinosa -, ou a Cultura – como para Hegel
– ou, enfim, uma formação histórico-social – como para Marx. Em qualquer dos
casos, é a totalidade que age ou atua segundo seus próprios princípios, dando a
si mesma suas leis, suas regras, suas normas. Essa totalidade é livre em si mesma
porque nada a força ou a obriga do exterior, e por sua liberdade instaura leis
e normas necessárias para suas partes (os indivíduos). Em outras palavras, a
liberdade, agora, não é um poder individual incondicionado para escolher – a
Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação social não escolhe -,
mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo
necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.
Como podemos observar, essa
concepção não mantém a oposição entre liberdade e necessidade, mas afirma que a
necessidade (as leis da Natureza, as normas e regras da Cultura, as leis da
História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras
palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define
por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é necessária porque tais
leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz. Liberdade não é
escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a
natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é, então, a liberdade
humana?
São duas as respostas a essa
questão:
1. a primeira afirma que o todo
é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em
conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade;
2. a segunda afirma que as
partes são de mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres
como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a
liberdade é tomar parte ativa na
atividade do todo. Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as
condições estabelecidas pelo todo, conhecer suas causas e o modo como
determinam nossas ações, e, por outro lado, graças a tal conhecimento, não ser
um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas
também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto
esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao
conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir.
Além da concepção de tipo
aristotélico-sartreano e da concepção de tipo estoico-hegeliano, existe ainda
uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores. Afirma,
como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer
possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias
naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos, isto é, pela
totalidade natural e histórica em que estamos situados. Afirma, como a
primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis.
Todavia, não se trata da liberdade de querer
alguma coisa e sim de fazer alguma
coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no
século XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa
quando temos o poder para fazê-la.
Essa terceira concepção da
liberdade introduz a noção de possibilidade
objetiva. O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida
subjetivamente por nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração
da necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós,
em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para
perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o
curso das coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
Na verdade, a não ser aqueles
filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional
da vontade, em quaisquer circunstâncias (como o fizeram, por razões diferentes,
Kant e Sartre), os demais, nas três concepções apresentadas, sempre levaram em
conta a tensão entre nossa liberdade
e as condições – naturais, culturais, psíquicas – que nos determinam. As
discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias
histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e
por isso uma ideia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta
ou implícita nas teorias sobre a liberdade.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
23 de novembro de 2016 às 13:55
Olá Pessoal do site Filosofando e Historiando, gostaria de parabenizá-los pelos ótimos conteúdos.
Abraços,
Andréia