O cristianismo: interioridade e dever
Diferentemente de outras
religiões da Antiguidade, que eram nacionais e políticas, o cristianismo nasce
como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma
nação ou a um Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus. Em outras
palavras, enquanto nas demais religiões antigas a divindade se relacionava com
a comunidade social e politicamente organizada, o Deus cristão relaciona-se
diretamente com os indivíduos que nele creem. Isso significa, antes de qualquer
coisa, que a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a
sociedade, mas por sua relação espiritual e interior com Deus. Dessa maneira, o
cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética:
● em primeiro lugar, a ideia de que a virtude se define por nossa relação
com Deus e não com a cidade (a polis)
nem com os outros. Nossa relação com os outros depende da qualidade de nossa
relação com Deus, único mediador entre cada indivíduo e os demais. Por esse
motivo, as duas virtudes cristãs primeiras e condições de todas as outras são a
fé (qualidade da relação de nossa alma com Deus) e a caridade (o amor aos
outros e a responsabilidade pela salvação dos outros, conforme exige a fé). As
duas virtudes são privadas, isto é, são relações do indivíduo com Deus e com os
outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um;
● em segundo lugar, a afirmação de que somos dotados de vontade livre – ou
livre-arbítrio – e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirige-se para o
mal e para o pecado, isto é, para a transgressão das leis divinas. Somos seres
fracos, pecadores, divididos entre o bem (obediência a Deus) e o mal (submissão
à tentação demoníaca). Em outras palavras, enquanto para os filósofos antigos a
vontade era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar a desmesura
passional de nossos apetites e desejos, havendo, portanto, uma força interior
(a vontade consciente) que nos tornava morais, para o cristianismo, a própria
vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio divino para nos
tornarmos morais.
Qual o auxílio divino sem o qual a vida ética seria impossível? A lei divina revelada, que devemos
obedecer obrigatoriamente e sem exceção.
O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si
mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção
leva a introduzir uma nova ideia na moral: a ideia do dever.
Por meio da revelação aos profetas (Antigo Testamento) e de Jesus Cristo
(Novo Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres
humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a virtude e o vício, a felicidade
e a infelicidade, a salvação e o castigo. Aos humanos, cabe reconhecer a
vontade e a lei de Deus, cumprindo-as obrigatoriamente, isto é, por atos de dever. Estes tornam morais um
sentimento, uma intenção, uma conduta ou uma ação.
Mesmo quando, a partir do Renascimento, a filosofia moral distancia-se dos
princípios teológicos e da fundamentação religiosa da ética, a ideia do dever
permanecerá como uma das marcas principais da concepção ética ocidental. Com
isso, a filosofia moral passou a distinguir três tipos fundamentais de conduta:
1. a conduta moral ou ética, que se realiza de acordo com as normas e as
regras impostas pelo dever;
2. a conduta imoral ou antiética, que se realiza contrariando as normas e
as regras fixadas pelo dever;
3. a conduta indiferente à moral, quando agimos em situações que não são
definidas pelo bem e pelo mal, e nas quais não se impõem as normas e as regras
do dever.
Juntamente com a ideia do dever, a moral cristã introduziu uma outra,
também decisiva na constituição da moralidade ocidental: a ideia de intenção.
Até o cristianismo, a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem como
pressuposto algo que se realizava no interior do agente, em sua vontade
racional ou consciente. Eram as condutas visíveis que eram julgadas virtuosas
ou viciosas. O cristianismo, porém, é uma religião da interioridade, afirmando
que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos
pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres humanos. A primeira relação
ética, portanto, se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus, entre a
alma invisível e a divindade. Como conseqüência, passou-se a considerar como
submetido ao julgamento ético tudo quanto, invisível aos olhos humanos, é
visível ao espírito de Deus, portanto, tudo quanto acontece em nosso interior.
O dever não se refere apenas às ações visíveis, mas também às intenções invisíveis, que passam a ser
julgadas eticamente. Eis por que um cristão, quando se confessa, obriga-se a
confessar pecados cometidos por atos, palavras e intenções. Sua alma,
invisível, tem o testemunho do olhar de Deus, que a julga.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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