Vida e morte
Vida e morte não são, para nós
humanos, simples acontecimentos biológicos. Como disse um filósofo, as coisas
aparecem e desaparecem, os animais começam e acabam, somente o ser humano vive
e morre, isto é, existe. Vida e
morte são acontecimentos simbólicos,
são significações, possuem sentido e fazem sentido.
Viver e morrer são a descoberta
da finitude humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha e minha, a morte. Esta, e somente ela, completa o que somos, dizendo
o que fomos. Por isso, os filósofos estoicos propunham que somente após a
morte, quando terminam as vicissitudes da vida, podemos afirmar que alguém foi
feliz ou infeliz. Enquanto vivos, somos tempo e mudança, estamos sendo. Os filósofos existencialistas disseram: a existência
precede a essência, significando com isso que nossa essência é a síntese final
do todo de nossa existência. “Quem não souber morrer bem terá vivido mal”, afirmou
Sêneca.
Num de seus ensaios, Que filosofar é aprender a morrer,
Montaigne escreve:
Qualquer que seja a duração de nossa vida, ela é completa.
Sua utilidade não reside na quantidade de duração e sim no emprego que lhe
dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis
fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante.
E conclui:
Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem
aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na
existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos
exime de toda sujeição e coação.
Morrer é um ato solitário.
Morre-se só: a essência da morte é a solidão. O morto parte sozinho; os vivos
ficam sozinhos ao perdê-lo. Resta saudade e recordação.
Viver é estar com os outros.
Vive-se com outrem: a essência da vida é a intercorporeidade e a
intersubjetividade. Os vivos estão entrelaçados: estamos com os outros e eles
estão conosco, somos para os outros e eles são para nós. No ensaio O filósofo e sua sombra, Merleau-Ponty
nos diz:
De “morre-se só” para “vive-se só” a conseqüência não é
exata, pois se apenas a dor e a morte forem invocadas para definir a
subjetividade, então, para ela, a vida com outros e no mundo serão impossíveis…
Estamos verdadeiramente sós apenas quando não o sabemos. Essa ignorância é a
solidão… A solidão de onde emergimos para a vida intersubjetiva é apenas a
névoa de uma vida anônima e a barreira que nos separa dos outros é impalpável.
A ética é o mundo das relações
intersubjetivas, isto é, entre o eu e o outro como sujeitos e pessoas,
portanto, como seres conscientes, livres e responsáveis. Nenhuma experiência
evidencia tanto a dimensão essencialmente intersubjetiva da vida e da vida
ética quanto a do diálogo. Ouçamos ainda uma vez Merleau-Ponty:
Na experiência do diálogo, constitui-se entre mim e o outro
um terreno comum, meu pensamento e o dele formam um só tecido, minhas falas e
as dele são invocadas pela interlocução, inserem-se numa operação comum da qual
nenhum de nós é o criador. Há um entre-dois, eu e o outro somos colaboradores,
numa reciprocidade perfeita, coexistimos no mesmo mundo. No diálogo, fico
liberado de mim mesmo, os pensamentos de outrem são dele mesmo, não sou eu quem
os formo, embora eu os aprenda tão logo nasçam e mesmo me antecipe a eles,
assim como as objeções de outrem arrancam de mim pensamentos que eu não sabia
possuir, de tal modo que, se lhe empresto pensamentos, em troca ele me faz
pensar. Somente depois, quando fico sozinho e me recordo do diálogo, fazendo
deste um episódio de minha vida privada solitária, quando outrem tornou-se
apenas uma ausência, é que posso, talvez, senti-lo como uma ameaça, pois
desapareceu a reciprocidade que nos relacionava na concordância e na
discordância.
Porque a vida é
intersubjetividade corporal e psíquica, e porque a vida ética é reciprocidade
entre sujeitos, tantos filósofos deram à amizade o lugar de virtude
proeminente, expressão do mais alto ideal de justiça. Num ensaio, Discurso da servidão voluntária,
procurando compreender por que os homens renunciam à liberdade e
voluntariamente servem aos tiranos, La Boétie contrapôs a amizade à servidão
voluntária, escrevendo:
Certamente, o tirano nunca ama e nem é amado. A amizade é
nome sagrado, coisa santa: só pode existir entre gente de bem, nasce da mútua
estima e se conserva não tanto por meio de benefícios, mas pela vida boa e
pelos costumes bons. O que torna um amigo seguro de outro é a sua integridade.
Como garantias, tem seu bom natural, sua fidelidade, sua constância. Não pode
haver amizade onde há crueldade e injustiça. Entre os maus, quando se juntam,
há uma conspiração, não sociedade. Não se apóiam mutuamente, mas temem-se
mutuamente. Não são amigos, são cúmplices.
Assim também Espinosa afirma que
o ser humano é mais livre na companhia dos outros do que na solidão e que
“somente os seres humanos livres são gratos e reconhecidos uns aos outros”,
porque os sujeitos livres são aqueles que “nunca agem com fraude, mas sempre de
boa-fé”.
Se perguntarmos quais são,
afinal, os valores, os motivos, os fins e os comportamentos éticos,
responderemos dizendo que são aqueles nos quais buscamos eliminar a violência
na relação com o outro, ao mesmo tempo em que procuramos manter a fidelidade a
nós mesmos. Ético é não desaprender “a linguagem com que os homens se
comunicam” e deixar “o coração crescer” para sermos mais nós mesmos quanto mais
formos capazes de reciprocidade e solidariedade.
A ética se move no campo das
paixões, dos desejos, das ações e dos princípios, possuindo uma dimensão
valorativa e normativa. Por um lado, valores e normas são exteriores e
anteriores a nós, definidos pela Cultura e pela sociedade onde vivemos; mas,
por outro lado, somos sujeitos
éticos e, portanto, capazes tanto de interiorizar valores e normas existentes,
quanto de criar novos valores e normas.
Minha liberdade, escreve um
filósofo, é o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas as minhas
experiências. Por atos de liberdade, interpretamos nossa situação – valores,
normas, princípios – e dessa interpretação nasce em nós a aceitação ou a
recusa, a interiorização ou a transgressão, a continuação ou a criação. A ação
mais alta da vida livre, disse Nietzsche, é nosso poder para avaliar os valores.
O filósofo grego Epicuro
escreveu: “O essencial para nossa felicidade é nossa condição íntima e dela
somos senhores”. Ser senhor de si – isto é, autônomo – e ser capaz de philia – isto é, de reciprocidade, de
relação intersubjetiva como coexistência e não-violência – é o núcleo da vida
ética. Como disse Epicuro, “a justiça não existe por si própria, mas
encontra-se sempre nas relações recíprocas, em qualquer tempo e lugar em que
exista entre os humanos o pacto de não causar nem sofrer dano”.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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