História e virtudes
Viemos observando que os valores
morais modificam-se na História porque seu conteúdo é determinado por condições
históricas. Podemos comprovar a determinação histórica do conteúdo dos valores,
examinando as virtudes definidas em diferentes épocas.
Se tomarmos a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, nela
encontraremos a síntese das virtudes que constituíam a arete (a virtude ou excelência ética) e a moralidade grega durante
o tempo em que a polis autônoma foi a
referência social da Grécia.
Aristóteles distingue vícios e
virtudes pelo critério do excesso, da falta e da moderação: um vício é um
sentimento ou uma conduta excessivos, ou, ao contrário, deficientes; uma
virtude, um sentimento ou uma conduta moderados.
Resumidamente, eis o quadro
aristotélico:
Virtude
|
Vício por
excesso
|
Vício por
deficiência
|
Coragem
|
Temeridade
|
Covardia
|
Temperança
|
Libertinagem
|
Insensibilidade
|
Prodigalidade
|
Esbanjamento
|
Avareza
|
Magnificência
|
Vulgaridade
|
Vileza
|
Respeito próprio
|
Vaidade
|
Modéstia
|
Prudência
|
Ambição
|
Moleza
|
Gentileza
|
Irascibilidade
|
Indiferença
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Veracidade
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Orgulho
|
Descrédito próprio
|
Agudeza de espírito
|
Zombaria
|
Rusticidade
|
Amizade
|
Condescendência
|
Enfado
|
Justa indignação
|
Inveja
|
Malevolência
|
Quando examinamos as virtudes
definidas pelo cristianismo, descobrimos que, embora as aristotélicas não sejam
afastadas, deixam de ser as mais relevantes. O quadro cristão pode ser assim
resumido:
● Virtudes teologais: fé,
esperança, caridade;
● Virtudes cardeais: coragem,
justiça, temperança, prudência;
● Pecados capitais: gula,
avareza, preguiça, luxúria, cólera, inveja e orgulho.
● Virtudes morais: sobriedade,
prodigalidade, trabalho, castidade, mansidão, generosidade, modéstia.
Observamos o aparecimento de virtudes novas, concernentes à relação do
crente com Deus (virtudes teologais), e da justiça como virtude particular
(para Aristóteles, a justiça é o resultado da virtude e não uma das virtudes);
a amizade é substituída pela caridade (responsabilidade pela salvação do
outro); os vícios são transformados em pecados (portanto, voltados para a
relação do crente com a lei divina); e, nas virtudes morais, encontramos um
vício aristotélico – a modéstia -, além do aparecimento de virtudes ignoradas
ou desconhecidas por Aristóteles – humildade, castidade, mansidão.
Surge também como virtude algo que, para um grego ou um romano, jamais
poderia fazer parte dos valores do homem livre: o trabalho. O ócio, considerado
pela sociedade escravista greco-romana como condição para o exercício da
política, torna-se, agora, vício da preguiça. Lutero dirá: “Mente desocupada,
oficina do diabo”.
Se, agora, tomarmos como referência um filósofo do século XVII, Espinosa,
veremos o quadro alterar-se profundamente.
Para Espinosa, somos seres naturalmente passionais, porque sofremos a ação
de causas exteriores a nós. Em outras palavras, ser passional é ser passivo,
deixando-se dominar e conduzir por forças exteriores ao nosso corpo e à nossa
alma. Ora, por natureza, vivemos rodeados por outros seres, mais fortes do que
nós, que agem sobre nós. Por isso, as paixões não são boas nem más: são
naturais. Três são as paixões originais: alegria, tristeza e desejo. As demais
derivam-se destas. Assim, da alegria nascem o amor, a devoção, a esperança, a
segurança, o contentamento, a misericórdia, a glória; da tristeza surgem o
ódio, a inveja, o orgulho, o arrependimento, a modéstia, o medo, o desespero, o
pudor; do desejo provém a gratidão, a cólera, a crueldade, a ambição, o temor,
a ousadia, a luxúria, a avareza.
Uma paixão triste é aquela que diminui a capacidade de ser e agir de nosso
corpo e de nossa alma; ao contrário, uma paixão alegre aumenta a capacidade de
existir e agir de nosso corpo e de nossa alma. No caso do desejo, podemos ter
paixões tristes (como a crueldade, a ambição, a avareza) ou alegres (como a
gratidão e a ousadia).
Que é o vício? Submeter-se às paixões, deixando-se governar pelas causas
externas.
Que é a virtude? Ser causa interna de nossos sentimentos, atos e
pensamentos. Ou seja, passar da passividade (submissão a causas externas) à
atividade (ser causa interna). A virtude é, pois, passar da paixão à ação,
tornar-se causa ativa interna de nossa existência, atos e pensamentos. As
paixões e os desejos tristes nos enfraquecem e nos tornam cada vez mais
passivos. As paixões e os desejos alegres nos fortalecem e nos preparam para
passar da passividade à atividade.
Como sucumbimos ao vício? Deixando-nos dominar pelas paixões tristes e
pelas desejantes nascidas da tristeza. O vício não é um mal: é fraqueza para
existir, agir e pensar.
Como passamos da paixão à ação ou à virtude? Transformando as paixões
alegres e as desejantes nascidas da alegria em atividades de que somos a causa.
A virtude não é um bem: é a força para ser e agir autonomamente.
Observamos, assim, que a ética espinosista evita oferecer um quadro de
valores ou de vícios e virtudes, distanciando-se de Aristóteles e da moral
cristã, para buscar na ideia moderna de indivíduo livre o núcleo da ação moral.
Em sua obra, Ética, Espinosa jamais
fala em pecado e em dever; fala em fraqueza e em força para ser, pensar e agir.
As virtudes aristotélicas inserem-se numa sociedade que valorizava as
relações sociopolíticas entre os seres humanos, donde a proeminência da amizade
e da justiça. As virtudes cristãs inserem-se numa sociedade voltada para a
relação dos humanos com Deus e com a lei divina. A virtude espinosista toma a
relação do indivíduo com a Natureza e a sociedade, centrando-se nas ideias de
integridade individual e de força interna para relacionar-se livremente com
ambas. Como, porém, vivemos numa cultura cristã, a perspectiva do cristianismo,
embora historicamente datada, tende a ser dominante, ainda que se altere
periodicamente para adaptar-se a novas exigências históricas. Assim, no século
XVII, Espinosa abandona as noções cristãs de pecado e dever que, no século
XVIII, reaparecem com Kant.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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