"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Mito e religião



(...) O verdadeiro substrato do mito não é de pensamento, mas de sentimen­to. O mito e a religião primitiva não são, de maneira alguma, totalmente incoe­rentes, nem destituídos de senso ou de razão; mas sua coerência depende mui­to mais da unidade de sentimento que de regras lógicas. Esta unidade é um dos impulsos mais vigorosos e profundos do pensamento primitivo. Se o pensamento científico desejar descrever e explicar a realidade será obrigado a empregar seu método geral, que é o de classificação e sistematização. A vida é dividida em províncias separadas, que se distinguem nitidamente uma da outra. As frontei­ras entre os reinos das plantas, dos animais, do homem — as diferenças entre as espécies, famílias e gêneros — são fundamentais e indeléveis. Mas a mente primitiva ignora e rejeita todas elas. Sua visão da vida é sintética e não analíti­ca; não se acha dividida em classes e subclasses, É percebida como um todo ininterrupto e contínuo, que não admite distinções bem definidas e incisivas. Os limites entre as diferentes esferas não são barreiras intransponíveis, mas fluen­tes e flutuantes. Não existe diferença específica entre os vários reinos da vida. Nada possui forma definida, invariável, estática: por súbita metamorfose qual­quer coisa pode transformar-se em qualquer coisa. Se existe algum traço carac­terístico e notável do mundo mítico, alguma lei que o governe — é a da meta­morfose. Mesmo assim, dificilmente poderemos explicar a instabilidade do mun­do mítico pela incapacidade do homem primitivo de apreender as diferenças empíricas das coisas. Neste sentido, o selvagem, muito frequentemente, demons­tra sua superioridade em relação ao homem civilizado, por ser suscetível a inú­meros traços distintivos, que escapam à nossa atenção. Os desenhos e pinturas de animais, que encontramos nos estádios mais baixos da cultura humana, na arte paleolítica, foram amiúde admirados pelo seu caráter naturalista. Revelam assombroso conhecimento de toda sorte de formas animais. A existência intei­ra do homem primitivo depende, em grande parte, de seus dotes de observação e discriminação; se for caçador, deverá estar familiarizado com os menores de­talhes da vida animal e ser capaz de distinguir os rastros de vários animais. Tu­do isto está pouco de acordo com a presunção de que a mente primitiva, por sua própria natureza e essência, é indiferenciada ou confusa, pré-lógica ou mís­tica. 

O que caracteriza a mentalidade primitiva não é sua lógica, mas seu senti­mento geral da vida. O homem primitivo não vê a natureza com os olhos do naturalista que deseja classificar coisas com a finalidade de satisfazer uma curiosidade intelectual, nem dela se acerca com um interesse puramente prag­mático ou técnico. Não a considera mero objeto de conhecimento nem o cam­po de suas necessidades práticas imediatas. Temos o hábito de dividir nossa vida nas duas esferas da atividade prática e da teórica. Nesta divisão, somos pro­pensos a esquecer que existe um estrato inferior debaixo de ambas. O homem primitivo não é vítima deste tipo de esquecimento; seus pensamentos e senti­mentos estão ainda encerrados nesse estrato original inferior. Sua visão da na­tureza não é meramente teórica nem meramente prática; é simpática. Se dei­xarmos escapar este ponto não poderemos abordar o mundo mítico. O traço mais fundamental do mito não é uma direção especial de pensamento nem uma direção especial da imaginação humana; é fruto da emoção e seu cenário emo­cional imprime, em todas as suas produções, sua própria cor específica. O ho­mem primitivo não carece, de maneira nenhuma, da capacidade de apreender as diferenças empíricas das coisas. Mas, em sua concepção da natureza e da vida, todas as diferenças são apagadas por um sentimento mais forte: a profun­da convicção de uma fundamental e indelével solidariedade da vida, que trans­põe a multiplicidade e a variedade de suas formas isoladas. Não atribui a si mes­mo um lugar único e privilegiado na escala da natureza. (...)
CASSIRER, Ernst, Antropologia filosófica. São Paulo, Mestre Jou, s.d. p. 134-136.

Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).

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