"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O mito do Superman



Uma imagem simbólica de particular interesse é a do Superman. O herói pro­vido de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imagi­nação popular, de Hércules a Sigfrid, de Roldão a Pantagruel e até a Peter Pan. Frequentemente, a virtude do herói se humaniza, e os seus poderes, mais que sobrenaturais, são a alta realização de um poder natural, a astúcia, a velocida­de, a habilidade bélica, e mesmo a inteligência silogizante e o puro espírito de observação, como acontece em Sherlock Holmes. Mas numa sociedade parti­cularmente nivelada, em que as perturbações psicológicas, as frustrações, os complexos de inferioridade estão na ordem do dia; numa sociedade industrial, onde o homem se torna número no âmbito de uma organização que decide por ele, onde a força individual, se não exercitada na atividade esportiva, permane­ce humilhada diante da força da máquina que age pelo homem e determina os movimentos mesmos do homem — numa sociedade de tal tipo, o herói positi­vo deve encarnar, além de todo limite pensável, as exigências de poder que o cidadão comum nutre e não pode satisfazer. 

O Superman é o mito típico de tal gênero de leitores: o Superman não é um terráqueo, mas chegou à Terra, ainda menino, vindo do planeta Crípton. Crípton estava para ser destruído por uma catástrofe cósmica e o pai do Su­perman, hábil cientista, conseguira pôr o filho a salvo, confiando-o a um veícu­lo espacial. Crescido na Terra, o Superman vê-se dotado de poderes sobre-humanos. Sua força é praticamente ilimitada, ele pode voar no espaço a uma velocidade igual à da luz, e quando ultrapassa essa velocidade atravessa a bar­reira do tempo, e pode transferir-se para outras épocas. Com a simples pres­são das mãos, pode submeter o carbono a uma tal temperatura que o transfor­ma em diamante; em poucos segundos, a uma velocidade supersônica, pode derrubar uma floresta inteira, transformar árvores em toros e construir com eles uma aldeia ou um navio; pode perfurar montanhas, levantar transatlânti­cos, abater ou edificar diques; seus olhos de raios X permitem-lhe ver através de qualquer corpo, a distâncias praticamente ilimitadas, fundir com o olhar objetos de metal; seu superouvido coloca-o em condições vantajosíssimas, permitindo-lhe escutar discursos de qualquer ponto que provenham. É belo, humilde, bom e serviçal: sua vida é dedicada à luta contra as forças do mal e a polícia tem nele um colaborador incansável.
Todavia, a imagem do Superman não escapa totalmente às possibilidades de identificação por parte do leitor. De fato, o Superman vive entre os homens sob as falsas vestes do jornalista Clark Kent; e, como tal, é um tipo aparentemente medroso, tímido, de medíocre inteligência, um pouco embaraçado, míope, súcubo da matriarcal e mui solícita colega Miriam Lane, que, no entanto, o des­preza, estando loucamente enamorada do Superman. Narrativa mente, a dupla identidade do Superman tem uma razão de ser, porque permite articular de modo bastante variado a narração das aventuras do nosso herói, os equívocos, os lances teatrais, um certo suspense próprio de romance policial. Mas, do ponto de vista mito poético, o achado chega mesmo a ser sapiente: de fato, Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através de um óbvio processo de identifi­cação, um accountant qualquer, de uma cidade norte-americana qualquer, nu­tre secretamente a esperança de que um dia, das vestes da sua atual personali­dade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo, Perspectiva. 1970. p. 246-248.

Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).

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