"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O mito hoje



Mas, e quanto aos nossos dias, os mi­tos são diferentes? O pensamento crí­tico e reflexivo, que teve início com os primeiros filósofos, na Grécia do sécu­lo VI a. C, e o desenvolvimento do pen­samento científico a partir do século XIV, com o Renascimento, ocuparam todo o lugar do conhecimento e conde­naram à morte o modo mítico de nos situarmos no mundo humano?
Essa é a posição defendida por Au­gusto Comte, filósofo francês do sécu­lo XIX, fundador do positivismo.
Essa corrente filosófica explica a evo­lução da espécie humana em três está­dios: o mítico (teológico), o filosófico (metafísico) e o científico. Este último apresenta-se como o coroamento do de­senvolvimento humano, que não só é superior aos outros, como é o único considerado válido para se chegar à ver­dade.  

Assim, ao opor o poder da razão à visão ingênua oferecida pelo mito, o po­sitivismo, de um lado, empobrece a rea­lidade humana. O homem moderno, tanto quanto o antigo, não é só razão, mas também afetividade e emoção. Se a ciência é importante e necessária à nossa construção de mundo, não ofe­rece a única interpretação válida do real. Ao contrário, a própria ciência po­de virar um mito, quando somos leva­dos a acreditar que ela é feita à margem da sociedade e de seus interesses, que mantém total objetividade e que é neu­tra.
Negar o mito é negar uma das for­mas fundamentais da existência huma­na. O mito é a primeira forma de dar significado ao mundo: fundada no de­sejo de segurança, a imaginação cria histórias que nos tranquilizam, que são exemplares e nos guiam no dia-a-dia.
Continuamos a fazer isso pela vida afo­ra, independente de nosso desenvolvi­mento intelectual. Essa função de criar fábulas subsiste na arte popular e permeia a nossa vida diária.
Hoje em dia, os meios de comunicação de massa trabalham em cima dos desejos e anseios que existem na nos­sa natureza inconsciente e primitiva.
Os super-heróis dos desenhos ani­mados e dos quadrinhos, bem como os personagens de filmes como Rambo, Os justiceiros e outros, passam a encarnar o Bem e a Justiça e assumem a nossa proteção imaginária, exatamente por­que o mundo moderno, com inflação, sequestros, violência e instabilidade no emprego, especialmente nos grandes centros urbanos, revela-se cada vez mais um lugar extremamente inseguro.
No campo político, certas figuras são transformadas em heróis, pregando um modelo de comportamento que prome­te combater, além da inflação, a corrup­ção, os privilégios e demais mordomias. Prometem, ainda, levar o país ao de­senvolvimento, colocando-o no Primei­ro Mundo. Prometem riqueza para to­dos. Têm de ganhar a eleição, não é?
Também artistas e esportistas podem ser transformados em modelos exem­plares: são fortes, saudáveis, bem-alimentados, têm sucesso na profissão — sucesso que é traduzido em reconheci­mento social e poder econômico —, são excelentes pais, filhos e maridos, vivem cercados de pessoas bonitas, interes­santes e ricas. Como não mitificá-los?
Até a novela, ao trabalhar a luta en­tre o Bem e o Mal, está lidando com va­lores míticos, pré-reflexivos, que se en­contram dentro de todos nós. Aliás, nas novelas, o casamento também é trans­formado em mito: é o grande anseio dos jovens enamorados, é a solução de todos os problemas, o apaziguamento de todas as paixões e conflitos. Por is­so quase todas terminam com um ver­dadeiro festival de casamentos.
Só que os astros transformados em mito são heróis sem poder real: têm so­mente poder simbólico no imaginário da população.
E as festas de formatura, de Ano No­vo, os trotes dos calouros, o baile de quinze anos, não são em tudo seme­lhantes aos rituais de passagem? Da morte de um estado e passagem para outro?
Assim, vemos que mito e razão se complementam nas nossas vidas. Só que o mito de hoje, se ainda tem força para inflamar paixões, como no caso dos astros, dos políticos ou mesmo de causas políticas ou religiosas, não se apresenta mais com o caráter existen­cial que tinha o mito primitivo. Ou seja, os mitos modernos não abrangem mais a totalidade do real. Podemos es­colher um mito da sexualidade (Madonna, talvez?), outro da maternidade, ou­tro do profissionalismo, sem que te­nham de ser coerentes entre si. Sem que causem uma revolução em toda nossa vida. Assim como houve uma es­pecialização do trabalho, parece que houve uma especialização dos mitos. De qualquer forma, como mito e ra­zão habitam o mesmo mundo, o pen­samento reflexivo pode rejeitar alguns mitos, principalmente os que veiculam valores destrutivos ou que levam à desumanização da sociedade. Cabe a ca­da um de nós escolher quais serão nos­sos modelos de vida.

Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).

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