"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

As duas realidades kantianas



Até agora pudemos perceber que Kant se aventura em considerações acerca do conhecimento com o fim de traçar precisamente os seus limites; ou seja, separar aquilo que é do alcance da Razão daquilo que não é do seu alcance. Toda esta investigação filosófica, como sabemos, surgiu na esteira da crítica de Hume sobre a metafísica. Logo, o objetivo de Kant é mostrar se a metafísica é ou não um conhecimento válido como é, por exemplo, o conhecimento científico cujas afirmações, na forma dos juízos sintéticos ou analíticos, podem ser verificadas na realidade ou derivadas de regras gerais. Todavia a Lógica, a Matemática e a Geometria, com suas afirmações que aparecem exclusivamente na forma de juízos analíticos, não trazem nenhuma informação nova, sendo suas verdades óbvias e/ou irrefutáveis.  

Mas e o conhecimento Metafísico? Aquele que afirma a existência dos conceitos em si mesmos? Da causalidade em si mesma? Dos objetos em si mesmos? Enfim, de um mundo em si mesmo independente do sujeito? Este mundo metafísico ficará em suspenso na medida em que, segundo Kant, não é possível construir os mesmos tipos de juízos sintéticos acerca dele, assim como é possível fazer com relação à ciência. No entanto, estas conjecturas nos levariam muito longe do nosso objetivo. Neste momento veremos como o mundo se separa em duas realidade possíveis para Kant.
A sensibilidade possibilita as percepções. Estas se apresentam ao entendimento que cria afirmações gerais sobre elas na forma dos juízos, que podem ser à priori ou à posteriori, que podem ser analíticos ou sintéticos. Esta generalização só existe graças à articulação da Razão Pura. O mundo resultante deste processo, o da percepção seguido da abstração e da afirmação, é chamado, por Kant, de Mundo fenomênico, ou simplesmente de Fenômeno. A concepção de Fenômeno envolve, na crítica kantiana, tudo aquilo que se apresenta à percepção e que é condicionado pelas formas puras, à priori, da sensibilidade: o Espaço e o Tempo.
Portanto o Fenômeno não pode ser a cadeira em si mesma, ou a mesa em si mesma, ou o professor em si mesmo etc, mas aquilo que se apresenta a nós na forma de cadeira, de mesa, de professor etc. O Fenômeno não é nenhum objeto tomado em si mesmo e independente do sujeito que o observa. Mas, dependente da observação do sujeito, o Fenômeno só existe à posteriori. Ele só existe na medida em que existe, antes dele, um Sujeito em geral ou um sujeito em particular, que cria a possibilidade da existência deste objeto quando o percebe. O Mundo Fenomênico é à posteriori, isto é, depende da existência anterior de um sujeito que o percebe, que o encaixa em conceitos do entendimento e que cria juízos acerca dele. Esta é a primeira realidade kantiana, uma realidade à posteriori.
Quando falamos em fenômeno kantiano, ou mundo fenomênico kantiano, estamos nos referindo fundamentalmente às percepções. Mas poderíamos muito bem nos perguntar: “O que, de fato, percebemos?”. A resposta de Kant é dada categoricamente em favor do fenômeno. “Percebemos tão somente os fenômenos.”. Porém, se falamos em percepções diversas, faz sentido imaginarmos que existam objetos, em si mesmos (independentes do sujeito), que causam os fenômenos. São necessários, portanto, dois elementos para a efetivação de uma percepção: um “sujeito” e um “objeto”. Na verdade, toda percepção é uma relação entre um sujeito que observa e um objeto que é observado. Se tenho a percepção de uma cadeira, então eu digo que existe uma relação (OBSERVAÇÃO) entre um sujeito (EU) e um objeto (CADEIRA) - desta relação sai o fenômeno que é expresso pelo juízo sintético “Julgo ver uma cadeira”.
Mas o que seria esse “objeto” que só percebo como fenômeno? Supostamente ele deve existir em si mesmo já que, sem ele, a relação de observação ficaria incompleta. No entanto ele não está diretamente ao alcance do sujeito (sem passar pela relação da observação), sem ser antes um fenômeno. Este objeto em si mesmo (objeto de conhecimento da Metafísica) e que Kant chama de coisa-em-si, só é mencionado como condição de possibilidade lógica do fenômeno e não como algo que podemos saber, ver ou conhecer de qualquer forma. Em outras palavras, a Razão somente supõe a existência dos objetos em si mesmos, mas não pode provar esta existência já que a coisa-em-si não chega diretamente nem à sensibilidade nem ao entendimento.
É necessário, portanto, que pensemos em algo que seja a origem primeira das sensações diversas, como a sensação de uma flor, de uma cor, de um som e assim por diante, mas não podemos provar que este algo exista. Não podemos saber o que seja, conhecer uma flor, uma cor, um som tomado-os em si mesmos, isto é, independentemente da observação que recai sobre eles. Quando sentimos um determinado cheiro, quando observamos um determinado objeto ou quando ouvimos um determinado som, estamos realizando todo aquele processo de conhecer descrito por Kant. Estamos trabalhando com os fenômenos, com as representações do mundo, e não com os objetos em si mesmos, aos quais não podemos ter acesso senão por meio destas representações que criamos ou obtemos.
Na medida em que a coisa-em-si é aquilo que é em si mesmo, independente do sujeito, e na medida em que a Metafísica é a ciência do em-si, das coisas que não se apresentam à sensibilidade, pois se o fizessem seriam fenômenos e não coisas-em-si, então é justo afirmar que a coisa-em-si é o objeto de estudo da Metafísica. A questão que iniciou toda a investigação kantiana acerca do conhecimento era aquela que se debruçava sobre a possibilidade de um conhecimento metafísico. Portanto a Metafísica não se refere a nenhum tipo de conhecimento que se ligue aos conceitos ou ao Entendimento; nem tampouco pode ser um conhecimento que se ligue às formas espaciais ou temporais ou à Sensibilidade, já que tanto o Entendimento como a Sensibilidade ligam-se ao domínio do fenômeno.
Esta é a segunda realidade kantiana, uma realidade inatingível ao sujeito, uma realidade que aparece logicamente antes dele e que só pode ser deduzida como mera possibilidade. Esta é a realidade à priori da Metafísica. Logo, a conclusão de Kant é: se a Metafísica é algum tipo de conhecimento, provavelmente não é um conhecimento muito útil ou, de qualquer forma, atingível ou representável.

Fonte: Palavra em Ação.
CD-ROM, Claranto Editora.

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