Mito e Filosofia
A Filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou
nasceu por uma ruptura radical com os mitos?
O que é um mito?
Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa
(origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da
água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos
instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).
A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva
de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa
para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear,
designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para
ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que
narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e
confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele
ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem
testemunhou os acontecimentos narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem
autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram
os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e
de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o
mito - é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois,
incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele
existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres,
isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas
pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e
semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com
um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como
quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio,
certo-errado, etc.
A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto
é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros
seres, que são seus pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mítica.
Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias
de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa
amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor,
isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de Cupido):
Houve uma grande festa entre os deuses. Todos foram
convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa
acabou, Penúria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto
engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe,
está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias
para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua
flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor,
inventa astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e
semimorto, ora rico e cheio de vida.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre
os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma
guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma
coisa no mundo dos homens.
O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de
Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em
outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor
de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus,
ficava com um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os
troianos ou os gregos - vencer uma batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as
deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a
ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas,
enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e
isso deu início à guerra entre os humanos.
3. Encontrando as recompensas ou castigos que os
deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece.
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens?
Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais,
porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se
aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho
e para a guerra.
Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses,
roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu
foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente,
devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens?
Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem
foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser
aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar
a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças,
pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no
mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por
meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que
governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo
são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do
verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo
genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia,
portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do
parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado.
Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do
mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós,
que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia
é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e
antepassados.
Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A
Filosofia, ao nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma explicação
racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e
repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos
mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a
cosmogonia e a teogonia?
Duas foram as respostas dadas.
A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo
do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e
capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a Filosofia nasceu por uma
ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade
produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de meados do século
XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a
importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os
mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma
sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo,
acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do
interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles.
Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e
afirma-se que a Filosofia, percebendo as contradições e limitações dos mitos,
foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa
outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente.
Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos
apontar três como as mais importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou
tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que
era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao
contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no
futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
2. O mito narrava a origem através de genealogias e
rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas,
enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por
elementos e causas naturais e impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em
céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros),
terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com
Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição,
combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou
água, terra, fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições, com o
fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da
narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da
autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite
contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação
seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não
vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres
humanos.
Fonte:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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