Filosofia: Nem oriental, nem milagre
Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século
XX, estudos históricos, arqueológicos, linguísticos, literários e artísticos
corrigiram os exageros das duas teses, isto é, tanto a redução da Filosofia à
sua origem oriental, quanto o “milagre grego”.
Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de
fato, a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais, não só porque as
viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por
outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios, assírios e caldeus),
mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas
Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais,
bem como nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a
mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.
Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos
religiosos, instrumentos musicais, dança, música, poesia, utensílios domésticos
e de trabalho, formas de habitação, formas de parentesco e formas de
organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as
culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas que
antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou.
Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos
afastarmos dos exageros da ideia de um “milagre grego”, podemos perceber o que
havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregos imprimiram mudanças de
qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes,
que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos.
Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma ideia da
originalidade grega:
1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos
orientais, cretenses, micênicos, minoicos e os que aparecem nos poetas Homero e
Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos
deuses e do início do mundo; humanizaram os deuses, divinizaram os homens;
deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das
instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral);
2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram
em ciência (isto é, num conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que
eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto na vida.
Assim, transformaram em matemática (aritmética, geometria,
harmonia) o que eram expedientes práticos para medir, contar e calcular;
transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento
dos astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro;
transformaram em medicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saúde
e a doença) aquilo que eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura
misteriosa das doenças. E assim por diante;
3. Com relação à organização social e política: os
gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia, mas inventaram também a
política. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a
autoridade e o governo. Mas, por que não inventaram a política propriamente
dita?
Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo
eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um
só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo, sem
consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém.
Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis,
que, em grego, significa cidade organizada por leis e instituições) porque
instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de
discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em
assembleias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais,
assembleias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade
pública, entre autoridade político-militar e autoridade religiosa) e sobretudo
porque criaram a ideia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva
pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de
divindades.
Os gregos criaram a política porque separaram o poder
político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de família
e a do sacerdote ou mago;
4. Com relação ao pensamento: diante da herança
recebida, os gregos inventaram a ideia ocidental da razão como um pensamento
sistemático que segue regras, normas e leis de valor universal (isto é, válidas
em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 +
2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre será maior
do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.).
Fonte:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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