Nietzsche para além do Bem e do Mal
A ideia que comumente temos de moral é a de um conjunto de hábitos que podem ser
enquadrados nos limites fornecidos por valores bipolares como o de Bem e Mal,
Correto e Errado, Honesto e Desonesto, Justo e Injusto, Verdadeiro e Falso etc.
Estes atributos qualitativos às ações humanas variam de lugar para lugar, de
época para época, enfim, de cultura para cultura. Neste sentido, a Moral também
varia na mesma ordem. A Ética, ou a filosofia moral, como já estudamos
anteriormente, é o campo filosófico que tenta abstrair esta variação de
lugares, épocas e culturas, para descobrir aquilo que, essencialmente,
poderíamos chamar de uma ação correta, de uma ação justa, de uma ação má e
assim por diante.
Logo,
compreendemos por esta elucidação preliminar que a Ética é um discurso
filosófico-metafísico, racional portanto, sobre o comportamento humano,
tentando averiguar o que seria o Bom em si mesmo (a bondade), o Justo em si
mesmo (a justiça), o Honesto em si mesmo (a honestidade) etc. A tradição do
racionalismo moral e metafísico para a Ética pressupõe uma existência à priori
(antes do sujeito) para estas idéias e valores morais.
Quando
o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) aparece no cenário filosófico
alemão, ele subverte a tradição racionalista. Ele não é a favor da idéia de que
é somente por meio da Razão que se alcança o conhecimento daquilo que se pode
chamar de “certo”, de “errado”, de “justo” etc. Na verdade, sua posição nos
leva exatamente para o caminho oposto, para o Irracionalismo filosófico.
Segundo as concepções filosóficas de Nietzsche, a Razão não é capaz de
apreender verdadeiramente a situação natural do homem. Segundo ele, a Razão não
faz mais que disfarçar ideologias de interesses nefastos na forma de uma
suposta moral Universalmente válida. Assim, os diversos valores bipolares que
citamos não passam de um condicionamento humano, forçado por ideologias com
interesses próprios, que querem se passar por uma filosofia moral
desinteressada.
Para
Nietzsche, o Bem e o Mal não existem à priori, mas somente após o homem ter
criado uma ideologia a respeito destes valores e discursado sobre eles. Desta
forma, o Bem o e Mal são à posteriori, ou seja, absolutamente relativos à uma
determinada situação contingencial e à apreciação do sujeito que executa e
percebe a ação. Nietzsche pretende revelar, com a sua crítica ao racionalismo,
que a Filosofia do Bem e do Mal não quer buscar a Liberdade Humana no mais alto
grau, mas sim limitar esta liberdade em prol do bem estar de uma consciência
doente, a saber: a Consciência da Razão, a Consciência dos que não merecem o
mundo, a Consciência não natural dos fracos de espírito. É o caso, portanto, de
se subverter, inverter, tresvalorar a moral do Bem e do Mal, indo além destes
valores mesquinhos e subjetivos, buscando a essência humana não por meio da
Razão, mas na índole, no caráter, na ação e, acima de tudo, na vida.
Para
Nietzsche, a imposição da moral do Bem e do Mal é uma mera questão de
sobrevivência da consciência fraca, racional e doente. Só assim ela é capaz de
refrear os impulsos naturalmente violentos dos fortes de espírito. A força de
vida dos fortes e sadios de espírito, que só como conseqüência é violenta,
representa uma ameaça real aos fracos que negam e refreiam seus impulsos
naturais. Para Nietzsche, estes mesmos fracos e doentes de espírito inventaram
a culpa, o pecado, o dever, o castigo para impor condições e limites aos que
afirmam sua força vital, acima de tudo e de todos, acima dos valores que são
convenientes para a manutenção de uma sociedade que só na aparência é boa,
justa, honesta e caridosa.
Nesta
sociedade, os valores que consideramos os mais adequados, como o bom, o
correto, a justiça, a honestidade, estão, segundo Nietzsche, deformados por
esta consciência infeliz. Assim sendo, o que é para o homem naturalmente justo,
honesto, bom e correto não é o que ideologicamente e racionalmente pretendemos
que seja, pois estamos influenciados por esta consciência infeliz que valoriza
a fraqueza, a hipocrisia, a asfixia do corpo e do caráter por meio da
mesquinhez da Razão. Na maioria das vezes, a afirmação da vida, do ideal grego
da saúde física e espiritual que Nietzsche pretende resgatar, nos aparecem como
o oposto disto; isto é, exatamente como aquilo que atualmente consideramos
injusto, desonesto, mal e errado.
Assim,
Nietzsche estabelece uma distinção entre dois tipos de moral: a moral dos
doentes e a moral dos sadios; a moral dos racionalistas e a moral dos
voluntaristas (vontade); a moral dos que negam a vida e seus impulsos naturais
e a moral daqueles que a afirmam em sua magnificência; a moral dos fracos e a
moral dos fortes; a moral dos escravos e a moral dos senhores. Na sociedade,
Nietzsche considera que a consciência judaico-cristã é o cume desse primeiro
tipo de moral dos desvalidos de espírito. Para ele, ela embute uma violência
contra aqueles que naturalmente deveriam dominar. Esta violência aparece
disfarçada por meio da ideologia de mortificação do corpo, de uma conduta
supostamente boa e honesta, da afirmação da fraqueza como algo bom.
Ela
esconde uma violência por meio da negação do caráter naturalmente violento do
ser humano, por meio da negação de suas diferenças, de suas idiossincrasias.
Esta moral oferece uma recompensa por esta negação, esta recompensa é uma vida
superior num paraíso supra-terreno. Mas ela também ameaça àqueles que não a
aceitarem com uma vida de sofrimentos num inferno que só ocorre após a
existência terrena. Faz sentido, então, dizer que esta moral é hipócrita quando
condena a violência, na medida em que ela mesma pratica uma violência muito
mais atroz. Esta violência da moral judaico-cristã aparece na forma de uma
restrição de comportamentos que são naturais ao homem, na forma de uma ameaça e
de uma chantagem espiritual, transformando o homem que se subjuga a ela numa
aberração moral que nega a si mesmo e a sua força de vida.
Fonte:
Palavra em Ação.
CD-ROM,
Claranto Editora.
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