Kant: O Espaço e o Tempo
Vimos
como o filósofo de Königsberg prepara o terreno para a sua teoria acerca do
conhecimento. Ele inicia apontando para o problema do dogmatismo metafísico na
filosofia, que só pôde perceber graças à ajuda do filósofo David Hume; em
seguida, ele inverte o jogo filosófico dizendo que devemos buscar as condições
puras de possibilidade para todo o conhecimento válido - e não tentar conhecer
os objetos em si mesmos, já que isto seria assumir um certo tipo de dogmatismo.
A última coisa que vimos é que foi no Sujeito do Conhecimento que Kant encontra
estas tais condições puras, mais precisamente no Sujeito Transcendental, que,
somado ao Sujeito empírico, propicia o fenômeno do conhecimento. Agora vamos
ver como se dão as primeiras condições à priori, puras, para o conhecimento.
Kant
divide o Sujeito Transcendental em três estruturas que se superpõem uma à
outra, como se fossem as camadas de um bolo: a estrutura da sensibilidade, do
entendimento e da razão pura. A estrutura da sensibilidade nos permite conhecer
por meio das percepções sensíveis; a estrutura do entendimento nos permite
conhecer por meio das categorias gerais (conceitos ou idéias), nas quais
encaixamos o que apreendemos do mundo; a estrutura da razão pura comanda as
duas primeiras estruturas, criando uma relação entre elas. Por enquanto, vamos
estudar somente a primeira estrutura: a da Sensibilidade em geral (pura ou
Transcendental).
Quando
percebemos um objeto, como uma flor, um quadro, uma pessoa, um animal, um
carro, o que cada um destes objetos tem em comum? Esta é a pergunta que Kant se
propõe para descobrir o que é essencial a toda percepção e o que não é. Será
essencial, portanto, aquilo que for necessário a qualquer percepção; e não será
essencial aquilo que variar de objeto para objeto, aquilo que for particular.
Concluímos com ele que cores, tamanhos, formas, lugares, cheiros, densidades,
espessuras, peso, massa etc não são essenciais para uma percepção pura, pois
estas qualidades variam de objeto para objeto: posso ver uma rosa branca da
mesma maneira como posso perceber uma rosa vermelha. A rosa branca pode ter
menos pétalas que a vermelha. Ou, ainda, a rosa vermelha pode estar ainda na
forma de botão enquanto a branca já estiver murchando. A rosa branca pode estar
num vaso e a vermelha na roseira. Apesar de todas estas diferenças
particulares, o que é comum em todas estas situações? O que está na essência da
percepção de qualquer rosa, ou de qualquer objeto, em qualquer estado?
A
resposta é a seguinte: o que há de comum em qualquer situação de percepção, de
qualquer objeto, em qualquer estado possível é, justamente, o fato de existir
uma condição à priori da sensibilidade sem a qual não se poderia perceber os
objetos sob suas formas particulares diversas: esta condição é o que chamamos
de Espaço.
Só
podemos perceber os objetos na medida em que eles se apresentam extensos, isto
é, “ocupando um lugar no espaço”. No entanto, não podemos realizar experiências
com o espaço em si mesmo. Só podemos realizar experiências com os corpos que se
inserem na condição de serem espaciais, como as rosas, por exemplo. Não podemos
ver o espaço, só podemos ver os objetos que nele se superpõem - e aquilo que
chamamos de “espaço vazio” não representa nada no mundo. O espaço em si mesmo
não é um objeto – não está no mundo – , é tão somente uma condição abstrata e,
por isto, à priori da estrutura da sensibilidade que se encontra no Sujeito
Transcendental.
Se
perguntarmos então: “Onde está o espaço?” A resposta deve ser: “Em lugar
algum”. Já que o espaço não é um objeto, mas somente uma condição em que o
percebermos segundo suas formas particulares, então ele não pode ser encontrado
no mundo. Por exemplo, para se afirmar que o espaço esteja em algum lugar fora
de nós, seria necessário supor um outro “espaço” que o contivesse, mas aí
ficaríamos mais uma vez com o problema de onde encaixar este novo “espaço”.
Desse modo, o Espaço não está nem fora de nós nem nos objetos. Mas se
perguntarmos “o espaço existe?”, a resposta de Kant será que o espaço não está
em nenhum lugar, mas existe como uma condição da sensibilidade em geral. Ele é
à priori, portanto é Universal e Necessário.
Mas
ainda há mais um fator a ser considerado. Não percebemos os objetos somente por
estes possuírem uma extensão. Se assim fosse, tudo se encontraria imóvel no
mundo. Observaríamos os objetos congelados, como se fossem fotografias. No
entanto os objetos possuem movimentos diversos: se deslocam de um lugar para o
outro, se modificam de diversas maneiras. Portanto a sensibilidade deve ter
mais uma condição à priori para a percepção deste movimento. Esta segunda
condição é o Tempo e podemos dizer que sem ele não seríamos capazes de perceber
qualquer movimento, pois o movimento nada mais é que uma sucessão de
configurações espaciais no tempo.
Assim,
um carro, que se move a 100 km/h, está se deslocando espacial e temporalmente e
isto só pode ser percebido se conseguimos notar as sucessões temporais de antes
e depois em relação ao espaço que ele ocupou, ao espaço que ele ocupa e ao
espaço que ele ocupará. Em outras palavras, o tempo e o espaço se relacionam na
forma do passado, do presente e do futuro. O tempo não está fora de nós, pois,
se estivesse, também deveria ser um “objeto” e possuir uma modificação a partir
de um outro “tempo”. Mas não é isso o que acontece, não vemos o tempo
envelhecer nem mudar de lugar. Só percebemos a sua passagem por meio dos
objetos que surgem, que mudam de lugar, que envelhecem ou que deixam de
existir.
Desta
maneira, tanto o Tempo como o Espaço se combinam para realizar a síntese da
percepção sensível do mundo. O espaço e o tempo não fazem parte do mundo, mas
existem tão somente como formas puras da percepção sensível do sujeito. Neste
sentido, tanto o espaço como o tempo dependem da existência anterior do sujeito
em geral (transcendental), mas existem de maneira à priori para o sujeito
particular ou empírico. Para Kant, o erro do dogmatismo metafísico que o
precedeu era justamente o de tentar atribuir estas qualidades aos objetos e não
ao sujeito que os observava. Daí a inversão no jogo filosófico: do objeto para
o sujeito. Esta atribuição das qualidades de tempo e espaço aos objetos levou
os filósofos de antes de Kant ao erro de imaginar uma essência metafísica que
sustentava as existências materiais destes objetos. Quando, na verdade, estes
filósofos estavam confundindo as condições à priori da sensibilidade (o espaço
e o tempo) com uma essência que não existe em nenhum mundo supra terreno.
Fonte:
Palavra em Ação.
CD-ROM, Claranto Editora.
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