Schopenhauer e a moral
Depois
desta um tanto rápida e árida investigação sobre alguns princípios filosóficos
da Teoria do Conhecimento em Descartes, Bacon, Hume e Kant, vamos mudar nosso
registro filosófico para o discurso sobre o comportamento humano, a Ética, que
se localiza no âmbito da Moral. Assim sendo, nada melhor do que falarmos, muito
de passagem, de um dos mais influentes filósofos do século XIX, cuja obra
marcou muitos outros pensadores posteriores a ele, em diversas outras áreas do
saber. Nos referimos a Arthur Schopenhauer (1788-1860), que pertenceu a uma
importante família holandesa, mas que criou uma obra de alcance mundial.
De
todas as suas obras, a de maior peso histórico e filosófico é, certamente, “O
Mundo como Vontade e Representação”. Deste imenso tratado que versa sobre o
conhecimento, a metafísica, a psicologia e a moral, retiraremos apenas o sumo
daquilo que nos interessa. Para entender como Schopenhauer consegue imaginar um
mundo que é, por um lado, Vontade e, por outro, Representação, é necessário
lembrarmos a separação das duas possíveis realidades kantianas: a coisa-em-si e
o fenômeno. Desta feita podemos colocar, par a par, os dois conceitos kantianos
aos dois conceitos schopenhaurianos obtendo o seguinte paralelo: coisa-em-si é
Vontade; fenômeno é Representação.
Da
mesma forma como não se pode ter acesso direto à coisa-em-si, também não se
pode ter acesso direto à Vontade que, em Schopenhauer, significa a essência
última de tudo que nos cerca e de tudo o que nos move. Já o fenômeno, por ser
aquilo que se apresenta à Sensibilidade e ao Entendimento, é uma maneira
indireta de conhecermos e de percebermos o mundo, é pois uma Representação dele.
Assim como Kant, Schopenhauer divide o mundo nessas duas possibilidades, uma
perceptível e outra essencial; porém as semelhanças entre os dois terminam aí.
Ao contrário de Kant, Schopenhauer vislumbra a possibilidade de um conhecimento
mais profundo que aquele que resulta da mera união entre Sensibilidade,
Entendimento e Razão Pura.
É
importante desde já não confundirmos o conceito de “Vontade”, que, para
Schopenhauer, é a causa primeira de todas as representações, com a sensação do
“desejo” que, segundo este filósofo, é uma representação particular da Vontade.
Assim, ter o desejo de tomar um sorvete, por exemplo, é uma das manifestações
da Vontade no espírito humano. A Vontade origina todo um mundo de
representações ganhando a forma daquilo que vemos como a cadeira, a bicicleta,
o cão, enfim, tudo o que nos rodeia. Deste modo, não podemos confundir o
conceito filosófico “Vontade” com a idéia comum que temos da palavra “vontade”,
esta última significando um desejo qualquer.
Para
Schopenhauer, a Vontade vem antes do Sujeito, é à priori portanto. Ela pode
assumir infinitas formas diferentes. Estas infinitas formas diferentes são as
representações particulares do mundo, e são absolutamente à posteriori — em
outras palavras, elas são posteriores ao sujeito que as percebe. Essas
representações são tudo aquilo que podemos conhecer enquanto fenômeno, por
exemplo, um cão, uma bicicleta, uma casa, uma pessoa, um sentimento, um
pensamento etc. No entanto, todas estas diferentes representações (um cão, uma
bicicleta, uma casa, uma pessoa, um sentimento etc.) são, essencialmente, a
mesma coisa, a saber: Vontade em estado puro.
A
Vontade em estado puro é Necessária e Universal, na medida em que se encaixa
como algo à priori. Os Fenômenos ou as Representações são acidentais,
contingenciais e se limitam àquilo que podemos observar deles. O próprio ser
humano aparece destas duas maneiras, participando destas duas possibilidades
teóricas. O nosso corpo sofre das mesmas limitações temporais e espaciais que o
restante dos corpos que existem no mundo. Logo, podemos encará-lo como mais uma
Representação entre tantas outras. No entanto, também possuímos uma intuição
direta de “nós mesmos” por meio de nossa consciência, que se percebe existindo
sem a necessidade de qualquer recurso perceptual como a audição, a visão, o
olfato, o paladar ou o tato. Faz sentido, então, dizer que nos percebemos de
maneira mediatizada por meio dos sentidos (como um objeto qualquer, uma
Representação qualquer) e, neste caso, somos completamente à posteriori. Mas
que também nos conhecemos diretamente, imediatamente, por meio da nossa
consciência, que “observa” a si mesma na ação de se conscientizar sobre tudo e
sobre si mesma.
Na
medida em que ocorre a autoconsciência da Vontade materializada numa Representação,
em especial a Representação humana, ela percebe que a liberdade da ação não é
possível para as Representações inconscientes, como é o caso dos objetos
inanimados, e, supõe-se, das outras espécies de animais. Somente no agir
humano, portanto, a Vontade pode se ver livre das necessidades do mundo
fenomênico. O trabalho que nos cabe agora é tentar descobrir quais ações seriam
estas, ou seja, quais ações conduzem à liberdade da Vontade e quais ações
conduzem necessariamente à necessidade.
Schopenhauer
associa, como já vimos, a Vontade em estado puro (à priori) à ausência do
condicionamento do espaço e do tempo. Em outras palavras, a Vontade não se
encontra nem no espaço nem no tempo, por este motivo não podemos criar qualquer
figuração intelectual do que viria ser a Vontade neste estado puro. Por sua
vez, ao se materializar e se tornar uma Representação qualquer, a Vontade se
condiciona às formas temporais e espaciais, neste sentido já podemos saber se
se trata de uma cadeira, de uma mesa etc. Em estado puro, a Vontade é livre,
incondicionada; como Representação, ela se vê presa aos limites impostos pelo
espaço e pelo tempo, é condicionada portanto. No ser humano, ela é livre, como
quando na percepção imediata da consciência-de-si, mas é também prisioneira dos
desígnios espaço-temporais que se evidenciam no corpo que deseja e anseia.
Por
estas vias percebemos que a conduta humana que conduz à liberdade será,
necessariamente, aquela que desconsidere a Representação (o corpo e suas
vicissitudes) enquanto coloca em supremacia a consciência-de-si, que é como um
canal de comunicação com a Vontade que está para além das necessidades físicas
do mundo. Deste modo, quando desejamos um sorvete e lutamos por conseguir um,
estamos buscando uma satisfação provisória para um desejo que se manifesta no
corpo e que se afigura em nosso espírito como uma Representação. Quando o
sorvete terminar, e passado algum tempo, buscaremos vias para obter um outro, e
assim sucessivamente, numa espécie de cadeia de necessidades sem fim.
Metaforicamente
falando, enquanto permanecermos numa eterna busca por novos sorvetes, seremos
prisioneiros de uma necessidade que nunca encontra uma satisfação permanente;
não somos livres, portanto estamos agindo erroneamente. Por outro lado, se negamos
as ações que tentam buscar satisfações provisórias no mundo — como tomar
sorvete, por exemplo —, então estamos cientes de nossa dupla condição de
Vontade e Representação. Só assim se pode optar por vias de satisfação mais
permanentes que se resumem, todas elas, na negação de todos os desejos e de
todas as ansiedades mundanas. Ao negarmos a nossa condição de Representação,
estamos indiretamente afirmando nossa condição de Vontade em estado puro e, ato
contínuo, nos tornando paulatinamente mais livres. Se estamos nos tornando mais
livres, então estamos agindo corretamente.
Fonte:
Palavra em Ação.
CD-ROM,
Claranto Editora.
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