A ciência exemplar: a matemática
A matemática nasce de necessidades práticas: contar coisas e medir
terrenos. Os primeiros a sistematizar modos de contar foram os orientais e,
particularmente, os fenícios, povo comerciante que desenvolveu uma
contabilidade, que posteriormente iria transformar-se em aritmética. Os
primeiros a sistematizar modos de medir foram os egípcios, que precisavam, após
cada cheia do rio Nilo, redistribuir as terras, medindo os terrenos. Criaram a
agrimensura, de onde viria a geometria.
Foram os gregos que transformaram a arte de contar e de medir em ciências:
a aritmética e a geometria são as duas primeiras ciências matemáticas,
definindo o campo matemático como ciência da quantidade e do espaço, tendo por
objetos números, figuras, relações e proporções. Após os gregos, foram os
pensadores árabes que deram o impulso à matemática, descobrindo, entre coisas,
o zero, desconhecido dos antigos.
Embora, no início, as matemáticas estivessem muito próximas da experiência
sensorial – os números referiam-se às coisas contadas e as figuras
representavam objetos existentes -, pouco a pouco afastaram-se do sensorial,
rumando para a atividade pura do pensamento.
Por esse motivo, Platão exigia que a formação filosófica fosse feita
através das matemáticas, por serem elas puramente intelectuais, seus objetos
verdadeiros sendo conhecidos por meio de princípios e demonstrações universais
e necessários. Também Descartes, no século XVII, afirmou que podemos duvidar de
todos os nossos conhecimentos e idéias, menos da verdade dos conceitos e
demonstrações matemáticos, os únicos que são indubitáveis. Platão e Descartes
enfatizaram o caráter puramente intelectual e a priori das ciências matemáticas.
A valorização da matemática decorre de dois aspectos que a caracterizam:
1. a idealidade pura de seus objetos, que não se confundem com as coisas
percebidas subjetivamente por nós; os objetos matemáticos são universais e
necessários;
2. a precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos, que
seguem regras universais e necessárias, de tal modo que a demonstração de um
teorema seja a mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se
faça pelos mesmos procedimentos em toda a época e lugar.
A universalidade e a necessidade dos objetos e instrumentos teóricos
matemáticos deram à ciência matemática um valor de conhecimento excepcional,
fazendo com que se tornasse o modelo
principal de todos os conhecimentos científicos, no Ocidente; enfim, a ciência
exemplar e perfeita.
Os objetos matemáticos são números e relações, figuras, volumes e
proporções. Quantidade, espaço, relações e proporções definem o campo da
investigação matemática, cujos instrumentos são axiomas, postulados,
definições, demonstrações e operações. Objetos e procedimentos matemáticos foram
fixados, pela primeira vez, pelo grego Euclides, numa obra chamada Elementos.
Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável, necessária e evidente
por si mesma, não precisando de demonstração e servindo de fundamento às
demonstrações. Por exemplo: o todo é maior do que as partes; duas grandezas
iguais a uma terceira são iguais entre si; a menor distância entre dois pontos
é uma reta. O axioma é um princípio regulador do raciocínio matemático e, por
ser universal e evidente, é a priori.
Um postulado é um princípio cuja evidência depende de ser aceito por todos
os que realizam uma demonstração matemática. É uma proposição necessária para o
encadeamento de demonstrações, embora ela mesma não possa ser demonstrada, mas
aceita como verdadeira. Por exemplo: “Por um ponto tomado em um plano, não se
pode traçar senão uma paralela a uma reta dada nesse plano”. Os postulados são
convenções básicas, aceitas por todos os matemáticos.
Uma definição pode ser nominal ou real. A definição nominal nos dá o nome
do objeto matemático, dizendo o que ele é. É analítica, pois o predicado é a explicação do sujeito. Por exemplo:
o triângulo é uma figura de três lados; o círculo é uma figura cujos pontos são
eqüidistantes do centro. Uma definição real nos diz o que é o objeto designado
pelo nome, isto é, oferece a gênese
ou o modo de construção do objeto. Por exemplo: o triângulo é uma figura cujos
ângulos somados são iguais à soma de dois ângulos retos; o círculo é uma figura
formada pelo movimento de rotação de um semi-eixo à volta de um centro fixo.
Demonstrações e operações são procedimentos submetidos a um conjunto de
regras que garantem a verdade e a necessidade do que está sendo demonstrado, ou
do resultado do cálculo realizado.
A matemática é, por excelência, a ciência hipotético-dedutiva, porque suas demonstrações e cálculos se apoiam
sobre um sistema de axiomas e postulados, a partir dos quais se constrói a
dedução coerente ou o resultado necessário do cálculo.
Um tema muito discutido na Filosofia das Ciências refere-se à natureza dos
objetos e princípios matemáticos.
São eles uma abstração e uma purificação dos dados de nossa experiência
sensível? Originam-se da percepção? Ou são realidades ideais, alcançadas
exclusivamente pelas operações do pensamento puro? São inteiramente a priori? Existem em si e por si mesmos,
de tal modo que nosso pensamento simplesmente os descobre? Ou são construções
perfeitas conseguidas pelo pensamento humano? Essas perguntas tornaram-se
necessárias por vários motivos.
Em primeiro lugar, porque uma corrente filosófica, iniciada com Pitágoras e
Platão, mantida por Galileu ,
Descartes, Newton e Leibniz, afirma que o mundo é em si mesmo matemático, isto
é, a estrutura da realidade é de tipo matemático. Essa concepção garantiu o
surgimento da física matemática moderna.
Em segundo lugar, porque o desenvolvimento da álgebra contemporânea e das
chamadas geometrias não-euclidianas (ou geometrias imaginárias) deram à
matemática uma liberdade de criação teórica sem precedentes, justamente por haver
abandonado a idéia de que a estrutura da realidade é matemática. Nesse segundo
caso, como já dizia Kant, a matemática é uma pura invenção do espírito humano,
uma construção imaginária rigorosa e perfeita, mas sem objetos correspondentes
no mundo.
Em terceiro lugar, porque, em nosso século, o avanço da criação e da
construção matemáticas foi decisivo para o surgimento da teoria da
relatividade, na física, da teoria das valências, na química, e da teoria sobre
o ácido desoxirribonucléico, na biologia. Em outras palavras, quanto mais
avançou a invenção e a criação matemática, tanto mais ela tornou-se útil para
as ciências da Natureza, fazendo com que, agora, tenhamos que indagar: Os
objetos matemáticos existem realmente (como queriam Platão, Galileu e Descartes), formando a estrutura do mundo,
ou esta é uma pura construção teórica e por isso pode valer-se da construção
matemática?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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