"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A ciência exemplar: a matemática


A matemática nasce de necessidades práticas: contar coisas e medir terrenos. Os primeiros a sistematizar modos de contar foram os orientais e, particularmente, os fenícios, povo comerciante que desenvolveu uma contabilidade, que posteriormente iria transformar-se em aritmética. Os primeiros a sistematizar modos de medir foram os egípcios, que precisavam, após cada cheia do rio Nilo, redistribuir as terras, medindo os terrenos. Criaram a agrimensura, de onde viria a geometria.
Foram os gregos que transformaram a arte de contar e de medir em ciências: a aritmética e a geometria são as duas primeiras ciências matemáticas, definindo o campo matemático como ciência da quantidade e do espaço, tendo por objetos números, figuras, relações e proporções. Após os gregos, foram os pensadores árabes que deram o impulso à matemática, descobrindo, entre coisas, o zero, desconhecido dos antigos.  

Embora, no início, as matemáticas estivessem muito próximas da experiência sensorial – os números referiam-se às coisas contadas e as figuras representavam objetos existentes -, pouco a pouco afastaram-se do sensorial, rumando para a atividade pura do pensamento.
Por esse motivo, Platão exigia que a formação filosófica fosse feita através das matemáticas, por serem elas puramente intelectuais, seus objetos verdadeiros sendo conhecidos por meio de princípios e demonstrações universais e necessários. Também Descartes, no século XVII, afirmou que podemos duvidar de todos os nossos conhecimentos e idéias, menos da verdade dos conceitos e demonstrações matemáticos, os únicos que são indubitáveis. Platão e Descartes enfatizaram o caráter puramente intelectual e a priori das ciências matemáticas.
A valorização da matemática decorre de dois aspectos que a caracterizam:
1. a idealidade pura de seus objetos, que não se confundem com as coisas percebidas subjetivamente por nós; os objetos matemáticos são universais e necessários;
2. a precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos, que seguem regras universais e necessárias, de tal modo que a demonstração de um teorema seja a mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se faça pelos mesmos procedimentos em toda a época e lugar.
A universalidade e a necessidade dos objetos e instrumentos teóricos matemáticos deram à ciência matemática um valor de conhecimento excepcional, fazendo com que se tornasse o modelo principal de todos os conhecimentos científicos, no Ocidente; enfim, a ciência exemplar e perfeita.
Os objetos matemáticos são números e relações, figuras, volumes e proporções. Quantidade, espaço, relações e proporções definem o campo da investigação matemática, cujos instrumentos são axiomas, postulados, definições, demonstrações e operações. Objetos e procedimentos matemáticos foram fixados, pela primeira vez, pelo grego Euclides, numa obra chamada Elementos.
Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável, necessária e evidente por si mesma, não precisando de demonstração e servindo de fundamento às demonstrações. Por exemplo: o todo é maior do que as partes; duas grandezas iguais a uma terceira são iguais entre si; a menor distância entre dois pontos é uma reta. O axioma é um princípio regulador do raciocínio matemático e, por ser universal e evidente, é a priori.
Um postulado é um princípio cuja evidência depende de ser aceito por todos os que realizam uma demonstração matemática. É uma proposição necessária para o encadeamento de demonstrações, embora ela mesma não possa ser demonstrada, mas aceita como verdadeira. Por exemplo: “Por um ponto tomado em um plano, não se pode traçar senão uma paralela a uma reta dada nesse plano”. Os postulados são convenções básicas, aceitas por todos os matemáticos.
Uma definição pode ser nominal ou real. A definição nominal nos dá o nome do objeto matemático, dizendo o que ele é. É analítica, pois o predicado é a explicação do sujeito. Por exemplo: o triângulo é uma figura de três lados; o círculo é uma figura cujos pontos são eqüidistantes do centro. Uma definição real nos diz o que é o objeto designado pelo nome, isto é, oferece a gênese ou o modo de construção do objeto. Por exemplo: o triângulo é uma figura cujos ângulos somados são iguais à soma de dois ângulos retos; o círculo é uma figura formada pelo movimento de rotação de um semi-eixo à volta de um centro fixo.
Demonstrações e operações são procedimentos submetidos a um conjunto de regras que garantem a verdade e a necessidade do que está sendo demonstrado, ou do resultado do cálculo realizado.
A matemática é, por excelência, a ciência hipotético-dedutiva, porque suas demonstrações e cálculos se apoiam sobre um sistema de axiomas e postulados, a partir dos quais se constrói a dedução coerente ou o resultado necessário do cálculo.
Um tema muito discutido na Filosofia das Ciências refere-se à natureza dos objetos e princípios matemáticos.
São eles uma abstração e uma purificação dos dados de nossa experiência sensível? Originam-se da percepção? Ou são realidades ideais, alcançadas exclusivamente pelas operações do pensamento puro? São inteiramente a priori? Existem em si e por si mesmos, de tal modo que nosso pensamento simplesmente os descobre? Ou são construções perfeitas conseguidas pelo pensamento humano? Essas perguntas tornaram-se necessárias por vários motivos.
Em primeiro lugar, porque uma corrente filosófica, iniciada com Pitágoras e Platão, mantida por Galileu, Descartes, Newton e Leibniz, afirma que o mundo é em si mesmo matemático, isto é, a estrutura da realidade é de tipo matemático. Essa concepção garantiu o surgimento da física matemática moderna.
Em segundo lugar, porque o desenvolvimento da álgebra contemporânea e das chamadas geometrias não-euclidianas (ou geometrias imaginárias) deram à matemática uma liberdade de criação teórica sem precedentes, justamente por haver abandonado a idéia de que a estrutura da realidade é matemática. Nesse segundo caso, como já dizia Kant, a matemática é uma pura invenção do espírito humano, uma construção imaginária rigorosa e perfeita, mas sem objetos correspondentes no mundo.

Em terceiro lugar, porque, em nosso século, o avanço da criação e da construção matemáticas foi decisivo para o surgimento da teoria da relatividade, na física, da teoria das valências, na química, e da teoria sobre o ácido desoxirribonucléico, na biologia. Em outras palavras, quanto mais avançou a invenção e a criação matemática, tanto mais ela tornou-se útil para as ciências da Natureza, fazendo com que, agora, tenhamos que indagar: Os objetos matemáticos existem realmente (como queriam Platão, Galileu e Descartes), formando a estrutura do mundo, ou esta é uma pura construção teórica e por isso pode valer-se da construção matemática?

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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