As mudanças científicas
Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere
à passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo, isto é, de um ideal
de cientificidade baseado na idéia de que a ciência é uma representação da
realidade tal como ela é em si mesma, a um ideal de cientificidade baseado na
ideia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação
do real, uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o
conhecimento absoluto dela. A segunda mudança refere-se à passagem da ciência
antiga – teorética, qualitativa – à ciência moderna – tecnológica,
quantitativa. Por que houve tais mudanças no pensamento científico?
Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e
progride. Evolução e progresso são duas idéias muito recentes – datam dos
séculos XVIII e XIX -, mas muito aceitas pelas pessoas. Basta ver o lema da
bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em “Ordem
e Progresso”.
As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é
uma linha reta contínua e homogênea (como a imagem do rio, que vimos ao estudar
a metafísica). O tempo seria uma sucessão contínua de instantes, momentos,
fases, períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de
tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu
antes. Contínuo e cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os
seres (naturais e humanos).
Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação
ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, os europeus civilizados
seriam superiores aos africanos e aos índios, a física galileana-newtoniana
seria superior à aristotélica, a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton.
Evoluir significa: tornar-se superior e melhor do que se era antes.
Progredir significa: ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade
superior.
Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de
momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o
presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa ideia aparecer
quando, por exemplo, os manuais de História apresentam as “influências” que um
acontecimento anterior teria tido sobre um outro, posterior.
Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que a
biologia apresenta quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente
ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá, isto
é, o futuro já está contido no ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo
tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já
era potencialmente.
Essa ideia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países
desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está
desenvolvido, digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado
desde que surgiu. Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou
dizendo que a finalidade – que é a mesma para ele e para o desenvolvido – ainda
não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso, as
expressões desenvolvido e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas
outras, tidas como ofensivas e agressivas: países adiantados e países
atrasados, isto é, países evoluídos e não evoluídos, países com progresso e sem
progresso.
Em resumo, evolução e progresso pressupõem: continuidade temporal,
acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com
relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada.
Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos
conhecimentos humanos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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